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Futebol não se resume ao Flamengo, o torcedor respira o seu clube

Goleiro Hugo, do Flamengo, depois de duelo com o Palmeiras pelo Brasileiro - Alexandre Vidal / Flamengo
Goleiro Hugo, do Flamengo, depois de duelo com o Palmeiras pelo Brasileiro Imagem: Alexandre Vidal / Flamengo

01/10/2020 04h00

Nos últimos dias, o Flamengo confirmou cerca de 30 casos entre jogadores titulares, reservas, comissão técnica e diretoria infectados pela Covid-19. Por conta das baixas em seu elenco, a diretoria do time carioca chegou a pedir à CBF o adiamento do jogo contra o Palmeiras, que ocorreu domingo passado.

Este requerimento soou com uma surpresa, como não poderia ser diferente, uma vez que o Flamengo foi o primeiro a levantar a bandeira para o retorno das atividades no futebol, ainda em maio, quando o Brasil presenciava o número de casos de coronavírus aumentar dia após dia.

Evito entrar no mérito se a diretoria rubro-negra fez o certo ou não à época — particularmente, acredito que o clube tem o direito de querer trabalhar, uma vez que vejo o futebol profissional como trabalho, e não como um simples jogo. Agora, como conseguiu o que almejava, o Flamengo precisa segurar o rojão e roer este osso até o fim.

Jorge Jesus comanda treino do Flamengo em meio à pandemia de coronavírus - Alexandre Vidal / Flamengo - Alexandre Vidal / Flamengo
Jorge Jesus comanda treino do Flamengo: sem espaço para intrusos no Centro de Treinamentos
Imagem: Alexandre Vidal / Flamengo

O mínimo que se espera de um clube que voltou antes de todos, inclusive, obtendo vantagens diante de adversários que só retomaram os treinos poucos dias antes do recomeço da Taça Rio, é que mantenha a postura. Não pode ser o primeiro a espernear quando esbarra num fator negativo.

Faço uma analogia à minha vida particular, aos meus negócios, pois sempre fui a favor à retomada das atividades econômicas, e ainda sou até hoje. Tenho consciência que economia e saúde andam juntas. O fato de eu não poder trabalhar, buscar o meu sustento e dos que dependem de mim afeta a minha saúde mental, e não só o meu bolso.

Mas preciso manter a minha postura, não terei direito algum de pedir uma licença, uma dispensa, depois que lutei para ser liberado ao trabalho, caso algum dos meus familiares seja contaminado por este vírus. Isto não é congruente.

O mínimo que se esperava do Flamengo é que respeitasse os protocolos que havia se comprometido com a CBF e os demais clubes da Série A do Brasileiro. Foi uma afronta. Desta forma, Palmeiras, CBF e STJD fizeram o certo por manter o jogo do último domingo.

Mas todo aquele processo se vai ter jogo ou não foi desgastante demais, péssimo ao torcedor e aos que estavam envolvidos naquela partida, parece até futebol de várzea. Nunca havia presenciado fato semelhante em 20 anos de carreira. Nem no Monte Castelo, time de várzea que defendi antes de me tornar profissional e onde voltei a disputar algumas partidas depois da minha aposentaria.

Rafinha, lateral do Flamengo, realiza teste para coronavírus no CT - Alexandre Vidal  / CRF - Alexandre Vidal  / CRF
Rafinha, lateral do Flamengo, realiza teste para coronavírus no CT flamenguista
Imagem: Alexandre Vidal / CRF

Esta dúvida que pairou até 10 minutos antes de o jogo começar no Allianz Parque derrubou todo o trabalho da semana. Os jogadores passaram horas daquele domingo lendo mensagens e vendo o noticiário informando que a partida não iria acontecer por causa de uma decisão judicial. Até mesmo quando já estavam no estádio a dúvida tomava conta dos vestiários.

Ao apito final, o treinador Vanderlei Luxemburgo chegou a mencionar a falta de concentração devido a todo o imbróglio. É impossível que não afete os atletas. Ou seja, tudo isso desfocou o que era mais importante: o clássico entre Palmeiras x Flamengo.

No futebol, quando o foco sai das quatro linhas, se torna muito chato ao torcedor. Queremos comemorar, às vezes até sofrer com o nosso time pelas coisas que acontecem no campo.

Muitos até podem apontar que fato semelhante já havia ocorrido em agosto, logo na primeira rodada do Brasileirão, quando a partida entre Goiás e São Paulo foi adiada devido ao surto de Covid-19 no time esmeraldino. Mas, ao contrário do Flamengo, o Goiás nunca brigou para voltar antes de todos.

O Flamengo se tornou o telhado de vidro por ter coragem de se expor. Fez isso com o pedido de retorno às atividades, nos trabalhos de bastidores da MP do Mandante e, recentemente, ao apoiar a volta do público aos estádios. É válido que os clubes defendam a liberação de seus torcedores nas partidas, uma vez que eu também aprovo a retomada de todos os setores da economia.

Precisamos ser mais honestos com nós mesmos. Basta analisarmos rapidamente o que está ocorrendo na nossa rotina. Tudo praticamente voltou ao normal: as praias estão lotadas, as pessoas estão recebendo visitas em casa, passeando em shoppings, indo a bares... É ínfima a parte da sociedade que realmente está respeitando uma quarentena de seis meses, convivendo somente com os seus familiares e sem tirar o pé de casa. Sempre fui e sempre serei a favor de tomarmos os devidos cuidados, mas temos que seguir a nossa batalha de todos os dias.

Parte da nossa sociedade necessita do futebol para sobreviver. Além da televisão, patrocinadores, ingressos e comercialização de produtos nas lojas oficiais das equipes, há ainda os que ganham o sustento nos arredores dos estádios, como os comerciantes que vendem churrasquinho, cachorro quente e os donos dos bares. Sem mencionar todo o aparato que envolve a recepção ao público — seguranças, pessoal da limpeza, das bilheterias... Este pessoal está desamparadas há seis meses.

Há sim o receio das aglomerações, e é válida toda essa preocupação. Que o protocolo de segurança seja implementado pouco a pouco, assim como já está acontecendo na Alemanha e na França.

Torcida do Flamengo faz a festa durante o jogo contra o Internacional - Alexandre Vidal e Marcelo Cortes/Flamengo - Alexandre Vidal e Marcelo Cortes/Flamengo
Torcida do Flamengo faz a festa durante o jogo contra o Internacional
Imagem: Alexandre Vidal e Marcelo Cortes/Flamengo

Há algum tempo não vou ao estádio, mas pretendo acompanhar uma partida in loco apenas para presenciar as novas medidas que serão implementadas no retorno dos torcedores. É muito simples apenas defender a liberação, mas é preciso ir pessoalmente ao estádio quando houver esta liberação.

Tenho ouvido falar sobre rejeição ao Flamengo devido as suas atitudes e pedidos de exclusão do Brasileirão. Não acredito que haja isso, é péssimo até para a competição como um todo. Não se encaixe apenas aos fatos de o Rubro-Negro ter a maior torcida do Brasil, o maior orçamento ou ter um elenco recheado de grandes jogadores, mas sim pela estrutura de um torneio que já está em andamento.

Mas claro, cria-se um sinal de alerta aos demais times que o encaram como alguém que almeja abraçar o mundo, que está acima de todos e de tudo. É precisa ter cuidado, porque quando se fala de Flamengo, não nos referimos aos dirigentes que comandam o clube no dia a dia, mas sim de 40 milhões de torcedores que impulsionam o time.

Assim como na vida, nada está acima de nós. Desta forma, não pode nem será diferente ao Flamengo. O futebol não respira o Flamengo. Cada torcedor respira o seu clube.

* Com colaboração de Augusto Zaupa