Milly Lacombe

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Eduardo Leite e os limites da agenda LGBTQ

O governador do Rio Grande do Sul se declara orgulhosamente gay. Quando o político gaúcho saiu publicamente do armário houve festa no meio: temos que respeitar, falavam seus pares. Que bom que ele teve a coragem de dizer quem é. Que homem. Viva Eduardo Leite e sua dignidade. As palavras afetuosas vinham do interior do conservadorismo político brasileiro, que nesse momento dá as mãos aos grupos de esquerda que lutam pelo reconhecimento das pautas identitárias.

É que para o liberalismo não é mesmo difícil tolerar a homossexualidade quando ela se apresenta em um corpo branco, vestindo roupas caras e usando sapatos finos: a alta passibilidade heterossexual de Leite serve bem ao Brasil que atura os gays desde que eles se comportem como héteros. "É um dos nossos. Chega mais, Eduardo. Vamos tomar um uísque e fumar um charuto aqui no meu gabinete".

O PSDB, um partido de direita com muito carinho pelas pautas da extrema direita fascista, viu em Leite a chance de voltar das tumbas. Olho nesse homem. Ele é o futuro. Amamos o amor seja como for.

Para quem milita na área e tem uma mínima compreensão do caráter da luta LGBTQIA+, Eduardo Leite e sua homossexualidade nunca enganaram. A luta gay desassociada de pautas sociais é tão útil quanto toalha para secar barra de gelo. Visibilidade gay sem consciência de classe é apenas mais uma balada.

Um homem gay poderoso que afague alguém como Jair Bolsonaro está trabalhando para o inimigo. Não se estabelece vínculo com a homofobia. Não se abraça aquele que diz preferir um filho morto a um filho gay. Não se apoia aqueles que defendem pautas fascistas.

Eduardo Leite trabalha em nome do poder do capital privado destruindo o meio ambiente com políticas que privilegiam os negócios e o lucro em detrimento do social. É a favor de aberrações como a nova legislação trabalhista e a reforma da previdência da maneira como foi feita. Está compactuado com o liberalismo que acha absolutamente normal que o motorista de Uber e o entregador de aplicativo não tenham vínculo empregatício e trabalhem sete dias por semana, 18 horas por dia. É bastante simpático à taxa de juros praticada pelo Banco Central, assim como à autonomia do mesmo.

Não se importa em sair flexibilizando leis de proteção ao meio ambiente (fez isso com quase 500) e acredita que há agendas mais importantes do que agir sobre os relatórios que avisaram que o estado ia colapsar por causa da emergência climática. Fala muito em responsabilidade fiscal e nunca em responsabilidade ambiental. A tragédia que paira sobre o estado que ele governa tem muito a ver com as escolhas liberais feitas por ele enquanto liderança.

E, finalmente, anda de mãos dadas com políticos que falam sem parar em Deus, Pátria e Família.

Eu poderia seguir listando a agenda liberal do governador que se declara orgulhosamente gay, mas acho que já temos exemplos suficientes para entender como ele atua politicamente. Agora vamos ver o que essas políticas agem sobre a comunidade LGBTQ.

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As políticas defendidas por Leite oprimem as classes mais baixas, onde há uma quantidade imensa de pessoas LGBTQs.

E daí, vocês podem pensar.

E daí que não é por acaso que o Brasil é o país que mais mata LGBTQs no mundo. Isso acontece por causa da brutal desigualdade em que vivemos. Leite pratica a ideologia social conservadora que, nas palavras do economista francês Thomas Piketty, trabalha com a sacralização do mercado, da propriedade e da desigualdade. Sem falar que essa defesa de Deus e da família é a defesa do núcleo que mais massacra jovens gays no Brasil. Uma parcela considerável das pessoas em situação de rua é formada por jovens gays expulso de casa por seus pais em nome de Deus.

As bichas que estão sendo assassinadas no Brasil não são essas que frequentam os mesmos ambientes de Leite e se parecem bastante com ele. Essas vivem num Brasil bastante seguro, com democracia respeitada e amplos direitos sociais. As bichas que estão morrendo são as periféricas. As pobres. As negras. As trans. As travestis. Essas que existem num Brasil sem lei e moram nos locais que alagam antes dos outros e de onde a água sai bem depois dos demais. Locais esquecidos pela agenda com a qual Leite trabalha. Locais onde a água farta só chega para inundar. Onde a luz, quando acaba, demora semanas para voltar e que, com a privatização de serviços básicos, serão definitivamente ignoradas porque, se não dá lucro, para que chegar até esse fim de mundo?

Se declarar orgulhosamente gay e reproduzir a agenda liberal hetero-patriarcal não nos serve de nada. A agenda LGBTQ usada para limpar a barra do fascismo da extrema direita brasileira, aliás, apenas piora a vida da comunidade que segue sendo assassinada, espancada, dilacerada, queimada. A verdadeira luta Queer não se separa da luta dos povos originários, da luta das feministas decoloniais, da luta dos trabalhadores de aplicativos, dos movimentos antirracistas, da ecológica. Estamos falando de uma só luta.

Então, quando vocês escutarem fãs de Eduardo Leite usando sua homossexualidade para reforçar a imagem de homem decente, moderno, inclusivo e justo, saibam que a homossexualidade dele não nos serve para absolutamente nada e que, usada para limpar a barra da violenta agenda liberal, apenas piora nossas vidas. Precisamos estar atentos a essa tentativa de apropriação de uma pauta tão importante por políticos que se declaram aliados mas querem apenas que as coisas continuem como sempre foram.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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