Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

A luta antimachista é de todo mundo

Outro dia um amigo me disse que se sente ofendido todas as vezes que eu generalizo colocações feministas. "A masculinidade é violenta", "A cultura heterossexual masculina é tóxica", "Homens precisam se letrar" etc. Ele não é abusador, não é assediador e muito menos estuprador. Ele não é opressor e se considera um aliado no dia a dia. Quando generalizo, ele se machuca.

Meu amigo não está sozinho nesse sentimento incômodo. Muitos homens que compreendem as violências do machismo se enxergam nessa situação. Essa mesma queixa já me foi feita inúmeras vezes e por isso achei que seria bacana escrever o texto abaixo.

Mas seria preciso que a gente fosse capaz de se afastar do problema para melhor enxergá-lo porque ele é mais complexo do que parece.

Comecemos com uma verdade inescapável: nem todo homem é machista, mas todos se beneficiam de um sistema machista. Não é confortável escutar esse tipo de afirmação, eu sei. Sabem como sei? Porque assim como nem toda pessoa branca é racista, todas - absolutamente todas - se beneficiam do sistema racista.

Temos aqui duas generalizações. O que acontece é que elas, mesmo ao apontarem verdades, acabam cometendo injustiças, certo?

Vamos esperar para responder, seguir com a associação de ideias e falar de como eu, uma pessoa branca, me insiro nas questões do racismo porque essa perspectiva vai ajudar na reflexão sobre homens que se sentem ofendidos com as generalizações das feministas.

Se uma pessoa negra me diz que corpos brancos são opressores e eu reajo argumentando "nem todos os brancos são opressores", o que eu estou fazendo?

Estou interrompendo um debate público urgente e importante para chamar a atenção para mim.

Estou querendo mostrar que, vejam, eu mesma não cometo ações opressoras, não sou racista. Eu sou bacana, eu estive na passeata contra o tal hipermercado que matou o jovem negro, então, por favor, menos com a generalização porque ela é injusta e me ofende.

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Mas como eu posso afirmar não ser racista se fui criada para ser?

Pela família, pela Igreja, pelo clube, pela escola, pela sociedade. São muitas e muitas forças que atuaram para que eu me tornasse racista.

E agora? Como sair dessa cilada?

Eu não me considero racista, me julgo uma pessoa decente e até antirracista. Mas se o racismo é uma das forças que organiza socialmente o Brasil por que eu teria escapado de me infectar? O que eu tenho de tão especial? Ou será que não sou assim tão decente quanto eu imagino ser?

Partir desse ponto de desconforto é necessário para que eu comece a me transformar. O mesmo vale para outras estruturas: machismo, misoginia e LGBTfobia.

Eu fico sempre muito intrigada quando um homem me diz: eu não sou machista. Me pergunto onde esse alecrim dourado foi criado. Em marte? Na selva por lobos? No fundo do mar por golfinhos?

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Se eu, ativista da causa feminista, ainda estou infectada de machismo, como um homem, por mais atento que seja, pode acreditar realmente que não é machista?

O homem que diz isso não entendeu nada ainda. Está a muitos e muitos anos luz de começar a se desconstruir.

A generalização que ofendeu o meu amigo é a que o coloca em uma situação incômoda. "Eu não sou esse cara que ela está dizendo que todos os caras são", ele pensa.

E eu sei exatamente o que ele está sentindo porque eu já senti isso quando comecei a me educar na luta antirracista. É demasiadamente humano. A gente, instintivamente, não quer o lugar do desconforto, o time do opressor. A gente quer a tal da zona de conforto. Mas, dentro dela, embora os dias sejam de sol, não há transformações. Dentro dela só há lagartas e nenhuma borboleta.

Vou contar uma história sobre o começo do meu letramento antirracista.

Eu, lendo Audre Lorde e bell hooks (é com minúsculas mesmo), estava me achando no papel, da branca aliada. Fui então participar de um debate muito branco num shopping center chique da cidade de São Paulo. Na plateia, só pessoas tão brancas quanto eu.

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O debate não era sobre racismo mas eu, nessa fase born again antirracista, queria falar disso e, quando peguei a palavra, pedi que todos os ali presentes notassem quantas pessoas negras havia no auditório bastante cheio. "Uma", eu mesma respondi olhando fixamente para a mulher negra sentada da plateia e que me olhava de volta. "Essa é a cara do racismo no Brasil", conclui triunfante e me conectando à mulher negra.

A mulher então pediu a palavra. Enquanto levavam até ela o microfone eu me ajeitei na cadeira. Ela estava prestes a reconhecer publicamente minha decência. Iria dizer que o mundo precisava de mais brancas como eu. Iria me dar o protagonismo merecido. Essa era a luta para mim: eu, a pessoa branca, querendo biscoito da mulher negra da plateia. E os outros brancos reconhecendo como eu me destacava deles no letramento antirracista.

Insiram aqui o meme das pessoas levantando e aplaudindo efusivamente.

A mulher então começou a falar.

"Eu queria dizer que não sou a única negra aqui", falou com a voz forte. E nesse momento eu queria que meu assento tivesse o modo ejetar. Como não era? Eu estava vendo só ela ali. Olhei com mais calma, já suando. Onde estavam as outras?

"Se vocês olharem em volta verão muitas outras pessoas negras. Elas estão servindo vocês de água com gás, estão trazendo taças de vinho e canapés, estão limpando o chão onde vocês jogam suas migalhas".

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Eu estava pronta para morrer. Um murro na boca do estômago teria doído menos. Me vi afogada no oceano do desconforto.

Saí do debate com um terço do tamanho com o qual nele entrei. Como eu não tinha visto as outras pessoas negras no salão? Não tinha visto porque estava inundada de racismo.

Entendi que eu ainda estava em processo bastante inicial de desconstrução. Fui escutar mais e mais. Lélia Gonzalez, Aimé Césaire, James Baldwin, Flavia Oliveira, Silvio Almeida, Djamila Ribeiro, Jones Manoel, Françoise Vergés, Du Bois, Frantz Fanon, Achille Mbembe.

Essa história lamentável aconteceu há oito anos. Estou mais atenta ao racismo hoje? Certamente. Entendi meu lugar dentro da luta? Me esforço todos os dias para responder que sim. Sigo me educando? Sim, e não vai ter um dia que eu poderei dizer que a educação antirracista acabou. Passarei por outras situações desconfortáveis? É bastante provável. Posso tentar ensinar um ativista do movimento negro a lutar da forma como eu acho que ela/ele deva lutar a fim de não me deixar no desconforto? Não, isso não me cabe.

É exatamente a mesma coisa com homens que se declaram aliados. Vocês não têm todas as respostas. Vocês não podem se entregar à tentação de, se considerando aliados, ensinar como uma feminista deveria lutar: seja mais doce, generalize menos, seja menos raivosa, seja mais didática.

Cada uma de nós luta com o que tem de feridas, de cicatrizes, de abusos e de mortes dentro de si. Tem dias que estaremos mais didáticas, em outros mais furiosas. Haverá dias mais doces e outros mais raivosos. Assim é. O importante é entender que não é sobre vocês; é sobre uma coisa maior.

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O desconforto é geral, eu entendo. Nunca estivemos aqui antes. Estamos perdendo um tanto de chão e outro de certezas. Fui educada para escutar de uma pessoa negra pouca coisa além de "sim senhora", assim como vocês foram educados para escutar de uma mulher pouca coisa além de "o jantar está pronto", "não saia sem um casaco" e, evidentemente, gemidos. A sociedade está mudando e é preciso que nos sustentemos no desconforto para enxergar as coisas como elas são e assim poder encontrar nossos novos lugares.

"Não tenho lugar de fala", alguns dizem para explicar por que não se manifestam sobre casos de machismo e misoginia. Mas se homens não têm lugar de fala para tratar do machismo quem terá? É como uma pessoa branca achar que não tem lugar de fala para discorrer sobre o racismo. Como não temos se nós somos aqueles que praticamos diariamente o racismo?

O conceito de lugar de fala foi, acidental ou propositalmente, distorcido. Todos temos um lugar de fala, o que muda é o ponto de vista. Sendo assim, homens conscientes podem e devem falar de machismo e de misoginia a partir de seu lugar de privilégio nesse mundo.

Portanto, quando dissermos que a cultura heterossexual masculina pratica, todos os dias, incontáveis violências contra mulheres resistam à tentação de interromper o debate para falarem de si mesmos e de como vocês não fazem nada disso, de como são decentes, de como essa declaração os machucou, ofendeu, entristeceu.

Façam como eu fiz depois do episódio do debate citado, olhem no espelho e repitam até parar de doer: não é sobre mim e não é sobre o que eu sinto.

O que deveria ofender e entristecer nossos amigos aliados é a seguinte generalização: a sociedade é diariamente violenta com mulheres.

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Uma mulher é estuprada a cada oito minutos. Três mulheres são assassinadas todos os dias por maridos, namorados e afins. Homens ganham 50% a mais do que mulheres em cargos iguais. Programas esportivos estão longe de terem o mesmo número de homens e de mulheres debatendo. Longe da igualdade racial. Cargos de chefia são ainda majoritariamente ocupados por homens.

Eis aí uma lista de coisas que deveriam ser mais ofensivas do que uma mulher dizer coisas como "a masculinidade é tóxica, violenta e opressora" ou "eu tenho medo de homem".

Temos medo, essa é a verdade. Assim como pessoas negras têm medo do comportamento de pessoas brancas. Um medo baseado em experiências vividas, em dados, em fatos. Quem pode contra-argumentar?

Então, meus queridos aliados, percebam como vocês se inserem na sociedade e como, mesmo sendo caras muito bacanas, se beneficiam desse sistema violento e injusto. Em vez de questionarem o comportamento das mulheres que estão na linha de frente colocando a cara no Sol e apanhando das mais variadas formas, entreguem-se à luta no interior das batalhas mais necessárias.

Como?

Se estiverem em posição de poder, executem salários iguais para homens e mulheres que fazem a mesma coisa e contratem mais mulheres. Chamem a atenção do amigo que acabou de se referir a uma mulher como vagabunda, saiam do grupo de mensagens da pelada onde as piadas misóginas se multiplicam e digam por que estão saindo, olhem para o uniforme escolar do filho, notem se ficou pequeno e providenciem um maior se for o caso, lavem o banheiro sem que a mulher precise pedir, façam a lista do supermercado observando tudo o que acabou dentro de armários, dispensas e geladeiras, peguem o cartão de vacinação da filha, vejam qual está faltando e levem a criança para se vacinar, não interrompam a voz de uma mulher, não esparramem suas pernas abertas em ambientes públicos? a luta é longa e é travada na miudeza — e no desconforto — do dia a dia. Estamos todos e todas vivendo nessas zonas de incômodo. Conseguirmos nos manter nelas sem espanar vai determinar o sucesso das nossas jornadas humanas. E a construção de um mundo mais decente.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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