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Flavio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

França x Argentina, nas pistas, dá empate

Mazzacane na Prost, em 2001: o último piloto argentino na Fórmula 1 - Flavio Mazzi/Warm Up
Mazzacane na Prost, em 2001: o último piloto argentino na Fórmula 1 Imagem: Flavio Mazzi/Warm Up

Colunista do UOL

19/12/2022 04h00

Esta é parte da newsletter do Flavio Gomes, enviada ontem (18). Na newsletter completa, apenas para assinantes, o colunista comenta sobre a dança das cadeiras dos "técnicos" da F-1 e a contratação de Mick Schumacher pela Mercedes. Quer receber antes o pacote completo, com a coluna principal e mais informações, no seu e-mail, semana que vem? Clique aqui.

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Franceses e argentinos decidiram a Copa do Mundo no domingo, no Qatar, em meio às intermináveis discussões futebolísticas sobre quem é melhor, quem foi melhor, quem será melhor. O embate do dia foi entre Mbappé e Messi, e não vou entrar nessa briga — Messi ganha sempre, pelos meus critérios, e para abreviar qualquer princípio de debate digo apenas que ambos cairiam muito bem na minha Portuguesa, para compor elenco.

Vamos às pistas, que é nosso feudo aqui. França x Argentina, quem leva?

Estava tentando lembrar qual foi o último piloto argentino na F-1, país que sabiamente nunca esboçou comparações entre seu maior nome e os conterrâneos que vieram depois. Falo, por óbvio, de Juan Manuel Fangio. Ninguém chegou perto, apesar do carinho que os vizinhos sempre tiveram por Carlos Reutemann, nos anos 70.

Fangio foi único, ganhou campeonatos com quatro carros diferentes — Alfa Romeo, Maserati, Ferrari e Mercedes — e tinha 46 anos quando conquistou o último de seus cinco títulos. Foram 24 vitórias em 51 GPs disputados, quase metade das corridas de que participou, todas elas na década de 50. Fangio é uma lenda. Nem mais, nem menos.

A Argentina teve 22 pilotos largando em ao menos um GP na história. O supracitado Reutemann foi quem mais se aproximou de "El Chueco" com suas 12 vitórias, mas nenhum título. Foi vice-campeão em 1981, perdendo a taça para Nelson Piquet — que anos antes pulara os muros do autódromo de Brasília para ver uma corrida extra-campeonato promovida pelo ditadura militar, passando o fim de semana escondido nos boxes da Brabham, equipe do "Lole", lavando as rodas de seu carro. Reutemann teve uma linda carreira e está na história brasileira da F-1. Foi o vencedor da primeira prova da categoria disputada no país, em 1972, em Interlagos. Também esse um GP extra-campeonato.

E o último, cabrón, afinal quem foi?

O impagável Gastón Mazzacane.

Desse moço me lembro bem, porque se alguma vez na vida fiquei com pena de um piloto foi dele, num episódio irrelevante ocorrido no distante mês de junho de 2000.

Mazzacane era um jovem de 25 anos que havia conseguido uma vaga na Minardi graças ao patrocínio de uma certa PSN, a Panamerican Sports Network, emissora de TV a cabo criada por um fundo de investimentos americano de nome Hicks, Muse, Tate & Furst, doravante chamado apenas de Riquismúse.

Muito antes de se falar em SAF, a tal de Riquismúse comprou os "futebóis" (amo palavras que não existem) do Corinthians e do Cruzeiro e investiu toneladas de dólares na tal PSN, comprando os direitos de transmissão da Libertadores, de uma pá de campeonatos europeus, das Copa Mercosul, Merconorte, Mercoleste, Mercoeste, da F-3000, de todos os torneios de motocross do planeta, biriba, peteca e futebol de botão. E ainda contratou o Téo José e o Mauro Beting.

A sede era em Miami e foi todo mundo morar lá. Como a grana abundava, enfiaram uns cobres na pior equipe da F-1, também, e escolheram para elevar o nome da PSN ao mundo o pobre Mazzacane.

Mas como o negócio da PSN era futebol e TV, aparentemente esqueceram que tinham também um piloto argentino na F-1 e Mazzacane, além de acumular péssimos resultados e a quase indiferença do resto do grid, vivia sozinho, sem amigos, hospedado em hotéis vagabundos e tendo de andar de táxi. Então, um dia, no distante mês de junho de 2000, estou num Burger King do aeroporto de Montreal esperando um voo para não sei onde quando noto ao meu lado, comendo um triste Whopper pior que o meu, que era duplo, o rapaz da Minardi. Incógnito, solitário, anônimo e, pior, tendo de encarar um Whopper murcho. Sem batata frita.

Foi quando passaram pela lanchonete uns meninos que tinham ido ver a corrida, vestidos de McLaren da cabeça aos pés, e um deles teve a impressão de que o rapaz do melancólico sanduíche era alguém que já tinha visto em algum lugar, sacou de um pequeno guia da corrida, comparou as fotos, se aproximou com alguma timidez, apontou para o retrato na página da Minardi e perguntou se ele era aquele da foto. À confirmação, pediu um autógrafo, que foi consignado num guardanapo engordurado que, desconfio, tenha sido o único que o moço concedeu em sua desalegre carreira como piloto de F-1.

Mazzacane encerrou sua passagem pela categoria no ano seguinte depois de poucas corridas pela Prost, quando a PSN deu calote na equipe e parou de pagar o patrocínio para o novo time do argentino. O canal de TV fechou em 2002 deixando um monte de gente sem receber. Desconfio que Téo José e Mauro Beting ainda tenham créditos da Riquismúse.

Fui pesquisar, claro, por onde anda Mazzacane. Está com 47 anos e ainda corre de carros, na popularíssima Turismo Carretera argentina, com um Chevrolet. Pelo pouco que pude levantar, já disputou 190 corridas na categoria. As estatísticas são um pouco confusas e aparentemente ele já ganhou duas. Seu apelido, e argentinos adoram apelidos, é "El Rayo".

E a França?

A França tem Alain Prost, que por coincidência era dono da última equipe de Mazzacane, outro gênio da raça (de pilotos) que coloca seu país em pé de igualdade com a Argentina na F-1, embora o ex-companheiro de Ayrton Senna tenha um título a menos. Em qualquer lista de melhores de todos os tempos que se faça, tanto Prost quanto Fangio têm lugar cativo por suas conquistas inquestionáveis. E Alain, a exemplo de Fangio, não deixou sucessores à altura — ainda que a França tenha tido muitos mais pilotos na história, alguns verdadeiramente bons. Dois de seus compatriotas seguem representando o país na categoria, Esteban Ocon e Pierre Gasly, que serão companheiros na igualmente francesa Alpine em 2023.

Fangio e Prost são os únicos campeões mundiais de seus países, que na bola somam, juntos, cinco Copas. Assim como os bleus da linhagem de Platini e Zidane e os alvicelestes descendentes de Maradona e Kempes, escreveram capítulos bonitos do esporte levando nos cockpits de seus carros as bandeiras que, neste domingo, no Qatar, paralisaram olhares e corações de todo o planeta.

Como deu para perceber, este texto foi escrito antes da decisão. Não sei quem foi campeão. Não sei quem levantou a taça. Não sei quem chorou, não sei quem sorriu.

Mas espero que as abuelas ainda estejam cantando, neste momento.

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