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Eliana Alves Cruz

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O corpo interditado na liberdade da fé

Mulher nada de burkini em praia de Dubai - iStock
Mulher nada de burkini em praia de Dubai Imagem: iStock

19/08/2021 04h00

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O mundo assiste com bastante angústia aos acontecimentos recentes no Afeganistão. A volta ao poder do Talibã (movimento fundamentalista e nacionalista islâmico) dá aos que tinham mais de 15 anos por ocasião dos atentados de 11 de setembro uma sensação de volta amarga no tempo.

O Talibã, que governou com mão de ferro o Afeganistão de 1994 até 2001, retornou com um discurso moderado, se apressando a informar que mulheres poderiam continuar estudando e seguindo suas vidas desde que dentro dos preceitos da religião, mas, segundo a jornalista e defensora dos direitos humanos Hamira Saqib, no dia seguinte às chocantes cenas em que tomaram o poder, os talibãs começaram a ir de casa em casa em busca das mulheres ativistas. Como todo governo autoritário tem o medo como principal aliado, as ruas já estão desertas da presença feminina.

Há cerca de 10 anos tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Wilfried Lemke, na ocasião assessor do Secretário Geral das Nações Unidas para o tema "Esporte para o Desenvolvimento e a Paz". Uma informação me chocou: Segundo estudos da ONU, a maioria esmagadora dos mortos no tsunami da Indonésia, em 2004, eram mulheres que não sabiam nadar o mínimo, pois o ensino de natação não era incentivado para as meninas devido à exposição do corpo. O fundamentalismo primeiro excluiu e depois matou.

Recentemente, em 2016, outro momento me espantou ainda mais: A luta que foi para que a França e alguns outros países autorizassem o uso do burkini, o traje usado por muçulmanas para a prática da natação e que cobre o corpo. Na época -- um passado recentíssimo --uma imagem extremamente desrespeitosa e violenta viralizou nas redes, com uma mulher sendo obrigada por policiais a tirar o burkini em uma praia da cidade de Nice.

Por mais que o ocidente não entenda os hábitos islâmicos, proibir o traje era vetar o acesso das mulheres muçulmanas às piscinas e praias e, portanto, ao ensino da mesma natação que poderia ter salvado as vidas na ilha indonésia de Sumatra. Acontecesse o tsunami em uma praia francesa naquela ocasião, talvez morresse o mesmo público-alvo.

Há que se ter cuidado. Na esteira das críticas e análises sobre a violência que marca estes governos e das legítimas manifestações de preocupação sobretudo com as mulheres e pessoas LGBTQIA+, vem ela, a igualmente nefasta, intolerância religiosa. Uma massa ocidental que se enxerga superior, julga e condena as práticas desta religião professada por milhões no globo terrestre, colocando no mesmo balaio todos e todas.

Por fim, os holofotes postos no islamismo nos últimos dias me remeteram a um fato que vivenciei em um país onde esta fé predomina. Como jornalista estava traduzindo para a imprensa local a fala de um atleta cristão, que tinha acabado de ganhar uma medalha. Ele me disse: "Diga a eles que graças a Jesus ganhei esta medalha. Diga. Quero ouvir a palavra Jesus na sua fala". O que se seguiu foi um longo preâmbulo aos colegas estrangeiros para contextualizar a fé do atleta brasileiro. Todas e todos entenderam, mas foi das situações mais constrangedoras que já vivi.

Cuidado, pois reproduzir e disseminar opressão disfarçada de libertação também é uma especialidade humana.