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Craque Daniel

Vai ser gauche na vida

Onde todos dizem saber o que fazer, mas quase ninguém fez - Alessandro Sabattini/Getty Images
Onde todos dizem saber o que fazer, mas quase ninguém fez Imagem: Alessandro Sabattini/Getty Images

30/11/2020 12h00

Maradona nunca foi o Funcionário do Mês, muito menos o Atleta do Século, da semana, ou mesmo do dia. Porque nunca foi atleta. Era artista, e talvez por isso seja tão pobremente compreendido pela crítica esportiva.

E que interesse um artista teria em ser atleta? Seja enfurecido em 82, orgásmico em 86, aos prantos em 90 ou assombrado em 94, era sempre descontrolado. De qualquer forma, seu talento tem que ser celebrado, não há escolha. Simples assim.

Maradona provavelmente foi a primeira pessoa a me fazer chorar, ali na Copa de 90, onde as crianças de 80 aprenderam que tudo pode dar muito errado a qualquer momento.

E meu saudoso padrasto, genovês torcedor fanático do Genoa, e portanto acostumado a ser castigado por Diego regularmente no Campeonato Italiano, entendeu instantaneamente meu drama, e me levou em voltas de carro pela cidade para que eu abrisse o vidro e gritasse os poucos palavrões que conhecia destinados a Diego e seu comparsa Claudio, e assim me sentir um pouco melhor - mesmo sabendo que eles não podiam me ouvir.

Brasil - Alessandro Sabattini/Getty Images - Alessandro Sabattini/Getty Images
Por vezes um esporte confuso
Imagem: Alessandro Sabattini/Getty Images

O futebol tem dessas coisas. Nos liga a memórias preciosas, transforma nossa cultura. No fim das contas, eu adulto de fato não me importo mais que o Brasil tenha perdido aquele jogo, mas todas as lembranças em volta são tão ricas quanto indissociáveis da minha pessoa, e nesse lugar Maradona está conectado a mim, e a tanta gente, eternamente.

Engrandecer Maradona não significa diminuir Pelé, muito pelo contrário. Tem que ter a alma microscópica para pensar dessa maneira. Maradona, para além de ter marcado vidas mais que a Xuxa e o He-Man (talvez nesse caso o Esqueleto) extrapolou o conceito do cara que joga muita bola.

Quando começamos a (tentar) entender o que ele fez pela Argentina e pelo Napoli, há ali coletivamente um impacto raro em termos de identidade, que não é uma palavra pequena. Jamais entenderemos completamente, porque não somos napolitanos e não somos argentinos, portanto a admiração aqui é de um cometa que passa ao longe.

Tão longe quanto Napoli, não só uma cidade marcada pela pobreza e marginalização por parte da Itália de Roma para cima, mas um clube previamente a um passo do rebaixamento, que depois de Diego foi alçado a títulos nacionais e internacionais, subjugando os nortistas Milan e Juventus, façanha não só impensável como profundamente redentora. Aí temos mais que um astro, mas um agente de mudança de autoestima e representatividade.

Copa de 86 - Foto:  Bongarts/Getty Images - Foto:  Bongarts/Getty Images
Ainda que Diego tenha tido ajuda da mão, é inacreditável que o goleiro tenha perdido essa disputa
Imagem: Foto: Bongarts/Getty Images

Tão longe quanto o México, numa Copa onde talvez o jogo mais emblemático do futebol tenha acontecido. Os ingleses invasores recentes das Malvinas se viram ultrajados por um Diego em transe, tanto num gol antológico de técnica quase metafísica, quanto na humilhação maior: o gol propositadamente irregular, a subversão das regras que os próprios ingleses haviam criado. Um gol que eles não poderiam nem aplaudir. O desacato maior.

Mas se aquela era a mão de Deus, nem quero imaginar de quem era o pé esquerdo. O segundo gol, definitivamente seu mais marcante, é uma obra de arte que ao mesmo tempo é um tapa na cara e um tiro no peito. Para o adversário é como ver uma chacina sendo cometida na sua frente, derrubando ingleses um a um como se nem estivessem ali. Quem é Lineker? Quem é Beardsley? Quem é Fenwick? Quem é Butcher? E, por fim, não menos desimportante, quem é Shilton?

Mas eles sabem muito bem com quem terão pesadelos para o resto da vida. Para o torcedor argentino é como ver o teto da Capela Sistina sendo pintado, mas nem Michelangelo faria algo tão belo - e Michelangelo jamais (assim como Messi) fez gol em mata-mata de Copa do Mundo. Quem pode dizer que é pesadelo de alguém? Quem pode dizer que mudou qualquer coisa que seja? Diego pode.

Maradona não reverteu a guerra, e nem poderia, mas humilhou seus inimigos diante da maior tribuna do mundo em seu próprio jogo. Alguém pode argumentar que sua habilidade puramente técnica teria lhe alçado por terceiros a um status divino. Contra a vontade e real aptidão você pode até ser eleito síndico, mas para ser erguido tão alto no olimpo da nossa cultura há de se ser algo muito especial.

Admirar Diego em seu surto cósmico e observar, por exemplo, os ronaldos e cia contra a França em 2006 (para citar uma Copa onde o Gaúcho era, por um breve e justificado momento, candidato a novo Maradona), os coloca como nanicos ao lado do Pibe. Apáticos durante toda a Copa e especialmente nesse jogo, fazendo de sua técnica quando muito uma atração circense, sorridentes e satisfeitos após a derrota aos abraços com o adversário. O mínimo que esperávamos, na impossibilidade do triunfo, era uma confusão generalizada, lágrimas, socos, ou qualquer coisa que sinalizasse que alguns dos nossos grandes atletas tinham também uma alma grande - mas foi triste constatar sua pequenez.

Para quem não capta o que acontece numa partida futebol, realmente são só 22 pessoas correndo atrás de uma bola, da mesma forma que para quem não se conecta com arte são apenas desenhos numa tela. Mas, no fim das contas, quem não reconhece a genialidade de Maradona não entendeu nada de nada.

Ainda que você não tenha dedicado sua atenção a dois minutos de uma partida na vida, basta uma breve espiada num aquecimento de Diego para se ter uma compreensão imediata de quem era atleta e quem era artista ali dentro. Quem ia correr atrás de uma bola e quem ia dançar balé. Quem trabalhava músculo e quem trabalhava energia. Quem praticava esporte e quem praticava magia.

Dizer que não é artista uma pessoa que flutuava movido por uma inspiração tão transcendental, através de movimentos esteticamente tão fascinantes e se conectava diretamente com o coração de tanta gente é realmente uma visão de quem não está enxergando nada. Por fim, ainda estamos aqui, e morreu Elvis. Morreu Ayrton Senna, Garrincha, Van Gogh, Glauber Rocha, Jim Morrison, Beethoven, Wolverine, todos ao mesmo tempo.

Com a Camorra e o mundo aos seus pés, mas com os joelhos envergados por carregar uma alma tão pesada e um talento tão imenso, morreu Diego Maradona. Drenado, mastigado e cuspido pela cultura de celebridades, morreu Diego Maradona. Morreu uma grande fatia do único esporte em que o miúdo, o gordinho, o miserável pode triunfar.

Nos demais, coletivos ou individuais, o melhor sempre vence e sempre vencerá. O mais rápido chega na frente e sempre chegará. Qual a graça na justiça? Mas agora o futebol, imprevisível como a vida, sucumbe diante da previsibilidade da morte. Até porque a morte sempre será maior que a vida.

Essa coluna não reflete nem minhas próprias opiniões. Escrevo enquanto discordo veementemente de minhas próprias palavras.

"Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai, Carlos!
Ser gauche na vida
As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres
A tarde talvez fosse azul
Não houvesse tantos desejos
O bonde passa cheio de pernas
Pernas brancas pretas amarelas
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração
Porém meus olhos
Não perguntam nada
O homem atrás do bigode
É sério, simples e forte
Quase não conversa
Tem poucos, raros amigos
O homem atrás dos óculos e do bigode
Meu Deus, por que me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Se sabias que eu era fraco
Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é meu coração
Eu não devia te dizer
Mas essa lua
Mas esse conhaque
Botam a gente comovido como o diabo"
(Carlos Drummond de Andrade)

Questionamento do Cerginho

Cerginho - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
por Professor Cerginho da Pereira Nunes
Imagem: Arquivo pessoal

Craque Daniel é apresentador do Falha de Cobertura, (supostamente) ex-jogador, empresário de atletas e inocentado de todas as acusações feitas contra ele. (Personagem interpretado por Daniel Furlan, um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o Falha de Cobertura e Choque de Cultura.)