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Craque Daniel

A desgraça alheia é o evento mais popular do Brasil

AFP
Imagem: AFP

18/01/2021 12h00

O brasileiro não torce contra. O brasileiro torce pelo drama, pela tragédia e acima de tudo, pela desgraça. Mas por quê? Porque rendem grandes histórias. Estamos todos sempre ávidos por grandes histórias porque somos fofoqueiros por natureza, e futebol é (no máximo) 5% bola rolando e 95% fofoca.

Tendo dito isso, o Brasil parou para ver Palmeiras x River, ávido por uma grande história, o que obviamente não estaria num empate xôxo ou em mais uma vitória alviverde. Mas sim num jogo que lembrou o brasileiro como é bom quando seu time já deixou uma competição. É a forma mais saudável de acompanhar futebol. Quem não é palmeirense agradeceu por seu clube de coração ter tido a dignidade de ser eliminado o quanto antes e poupar quem os apoia de um desgaste emocional desnecessário. E se há um desgaste emocional totalmente desnecessário, ele se chama futebol.

E de desgaste emocional em desgaste emocional, o River foi assinalando um gol atrás do outro, o mais impressionante é que parecia pouco - até porque foi realmente pouco, e o Palmeiras se classificou com uma derrota por apenas 2 x 0. O empate com o Grêmio na sexta seguinte só serviu para congelar a estranha sensação que essa equipe desperta.

A revolta das máquinas

Árbitro Esteban Ostojich analisa o VAR antes de anular pênalti marcado entre Palmeiras x River Plate - Amanda Perobelli/Reuters - Amanda Perobelli/Reuters
O maior espetáculo da Terra
Imagem: Amanda Perobelli/Reuters

O VAR é a coisa mais emocionante que aconteceu no futebol desde Garrincha. Criticado, questionado, desacreditado, mas como toda boa máquina, se revoltou contra a espécie humana e tomou conta de nossas paixões. A impressão é que há VARes mais bonitos que um gol.

Depois do jogo contra o River, o palmeirense sabe muito bem disso. O grito de "gol" agora é um grito de "talvez gol", o que não só é uma revolução filosófica, como uma inovação tecnológica tão desafiadora que faz com que o que você está vendo pode na verdade não estar acontecendo. Os gols que você comemora às lágrimas podem ser decretados como nunca terem acontecido. O futebol, o esporte mais ilógico do mundo, agora vê a frágil coluna que ainda sustentava alguma racionalidade ruir por completo. Isso sim é emoção. Há VARes mais surpreendentes que um drible.

Agora em vez de torcer por adultos infantilizados milionários de religiosidade desesperada e tatuagens feias, torcemos por homens de meia-idade de bermuda numa sala climatizada, controlando futebol por monitores. Lembra talvez demasiadamente acompanhar os atletas de e-sports, tão atletas quanto quem joga Call of Duty é um soldado ou quem joga Zelda é um elfo medieval. Videogame é brinquedo, e em momentos de profundas crises esportivas é bom não nos esquecermos disso.

Mas não me deixem mudar de assunto. A revolta das máquinas do futebol pós-pós-moderno não se limita à sala do VAR. Espalhou-se como uma doença de pele, atingido também a arquibancada, agora (ainda que mais que justificadamente) refém de um cântico mecânico sem alma orquestrado por um DJ de torcida.

Assim como aconteceu na música, não será grande surpresa se no futebol aos poucos começarem a perceber que o DJ de torcida vale mais a pena. É uma pessoa só, psicologicamente mais bem resolvida, com o casezinho dela, não arremessa pilha em quem vai bater escanteio, não vira faixa de cabeça para baixo e nem mesmo executa seus gritos de torcida mecânicos de trás para frente - o que implicaria no temido risco de mensagens satânicas.

Destaque da Semana: Técnico Cuca

Cuca beija imagem de Santa em classificação contra o Boca Juniors - Ivan Storti/Santos - Ivan Storti/Santos
Foco, fé e ingestão de células mortas: Cuca surpreende a América com o Santos
Imagem: Ivan Storti/Santos

Confesso que para a final da Lubertadores, minha maior preocupação será o intestino do técnico Cuca: estaria seu aparelho digestivo preparado para a quantidade de unhas que ele pretende comer? Para quem não acompanha, Cuca é um técnico que se alimenta basicamente das próprias unhas durante os jogos, um profissional tão economicamente viável que tira seus nutrientes de si mesmo; um treinador que se basta tanto em suas convicções quanto em seu eficiente sistema digestivo autossustentável. Ponto para a diretoria do Santos, que mais uma vez demonstrou escolher bem na crise. A vitória contra o Botafogo no domingo só confirmou esse fato.

Na semifinal contra o Boca, o jogo até começou disputado, com no lance do primeiro gol o Santos pedindo pênalti, mas depois que a bola entrou, desistindo do pênalti e comemorando o gol, mas aí quem pedia o pênalti era o Boca, mas o Santos não queria mais, transformando o lance numa improvável situação em que a defesa exigia uma penalidade contra si, penalidade que quem sofreu não mais aceitava.

Esse é o tipo de coisa que faz com que o futebol ainda permaneça com algumas de suas emoções verdadeiras intactas e imunes a revoluções de máquinas, que insistem em tomar o que temos de mais precioso: a humanidade falha, a mentalidade confusa, mas, acima de tudo, o instinto inabalável de passar a perna em nossos adversários, e muitas vezes - ainda - conseguir.

Essa coluna não reflete nem minhas próprias opiniões. Escrevo enquanto discordo veementemente de minhas próprias palavras.

Craque Daniel é apresentador do Falha de Cobertura, (supostamente) ex-jogador, empresário de atletas e inocentado de todas as acusações feitas contra ele. (Personagem interpretado por Daniel Furlan, um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o Falha de Cobertura e Choque de Cultura.)