Topo

Aranha

Teria o Brasil se acostumado ao racismo?

Campanha da Dove foi considerada "racista" - Reprodução/ Facebook
Campanha da Dove foi considerada 'racista' Imagem: Reprodução/ Facebook

Colunista do UOL

31/07/2020 04h00

O que acontece quando alguém faz uma denúncia ou se revolta em casos de preconceito?

Em pleno século XXI, é triste e revoltante presenciar que muitos ainda ficam surpresos quando negros se queixam de discriminação.

Esta discussão já deveria estar enterrada. Mas, por incrível que pareça, ainda há muitas pessoas que acreditam que o racismo não existe ou não é comum.

Será que esta atual mobilização para debater casos de preconceito só não aconteceu antes por que não queríamos falar sobre este assunto chato, que é desconfortável para os dois lados?

Não sei ao certo.

Mas dois fatores podem ter contribuído para esta situação. Primeiro, os cerca de três séculos que o Brasil explorou a mão de obra escrava. Somado a isso, a Lei Áurea que extinguiu a escravidão no nosso país foi assinada há apenas 132 anos.

É comum vermos no Brasil idosos próximos dos 100 anos ou mais. Para se ter uma noção, a pessoa mais velha do país era a mineira Maria Pereira dos Santos, que tinha 119 anos e nos deixou em maio passado.

Tudo é muito recente na história do Brasil. A proclamação da república, a ditadura militar, o direito ao voto para escolher diretamente o presidente...
Agora, você consegue imaginar este mundo?

Ao acordar e ligar a TV para acompanhar o telejornal da manhã, você acompanha as notícias com apresentadores negros e repórteres negros. Logo depois, inicia algum programa de entretenimento ancorado por uma apresentadora negra.

À noite, a história se repete. Na novela das 20h, os principais personagens são negros e apenas três ou quatro brancos fazem os papéis do motorista, da empregada doméstica, da babá ou do bandido. No quarto ao lado, o seu filho branco assiste a desenhos e filmes com todos os super-heróis negros.

Ao sair de casa, vai ao dentista ou ao médico negro. Quando for à padaria, é atendido por brancos, mas, na hora de pagar, se depara com o dono negro. Isso se estende por várias outras situações, como concessionárias de carros ou qualquer outro comércio.

No colégio da sua filha, as únicas pessoas brancas que ele vê são o porteiro, a tia da cantina e as faxineiras. Enquanto isso, quase todos os coleguinhas são negros e os professores e o diretor também negros.

Durante a aula de História, a professora ensina que os brancos eram escravos e foram retirados das suas terras a milhares de quilômetros para serem explorados. Centenas de anos depois, uma princesa negra chamada Isabel teve misericórdia e assinou um decreto libertando "os pobres coitados brancos". Neste momento, os colegas negros da sua filha, que é uma das poucas pessoas brancas naquele ambiente, fazem piadas e bullying.

Para anima-lá, você a leva ao shopping para comprar um brinquedo, mas ela demora para escolher a boneca porque nenhuma delas a representa. Ao perguntar ao vendedor se não há bonecas brancas, você descobre que, por uma lei, a loja é obrigada a ter este brinquedo, mas que fica escondido no fundo da loja, fora da vista das pessoas.

Já no caixa para pagar, a sua filha resolve declinar da boneca branca e prefere a negra porque todas as amigas têm bonecas pretas. E lá está a sua filha brincando e dizendo para a boneca negra não chorar porque "a mamãe está aqui".

Este é um pouco do mundo que uma pessoa negra vive. Uma pessoa comum certamente se surpreende com estes relatos. Ao abrir a boca, o racista diz que isto é vitivismo ou mi mi mi.

O progresso que alcançamos foi fruto de muitas lutas por melhores condições.

Acordar para o racismo é abrir mão de vantagens, entender o que é privilégio, parar com o discurso de que somos iguais, porque ainda somos tratados de maneira diferente.

Na corrida da meritocracia não partimos do mesmo ponto. Ações precisam ser feitas para que possamos largar do mesmo ponto e, enfim, o verdadeiro mérito apareça.

Mas os olhos dos brasileiros se acostumaram com o racismo.

* Ensaio do fotógrafo Chris Buck para Oprah Magazine, em 2017, em imagem do Instagram

Com colaboração de Augusto Zaupa