'Maldição da pedreira': moradores querem parque em local de crime chocante

Um terreno onde existiu uma pedreira abandonada com 30 metros de profundidade e 200 metros de diâmetro no Jardim Educandário, na zona oeste de São Paulo, está sendo disputado por moradores para virar um parque público.

A cratera não existe mais desde os anos 1990, e a imobiliária dona do local, que já construiu ali um condomínio, quer erguer mais casas sobre a densa mata nativa que o circunda, na região do Butantã. A indefinição tende a se estender por anos.

O que muitos desses mesmos moradores desconhecem é que o bairro vive à sombra de uma tragédia. Nos anos 1980, a pedreira foi cenário de um crime chocante que deixou dois jovens mortos e levou pânico à população.

Desde então, há quem jure existir passagens secretas, habitantes misteriosos e até uma "maldição" no lugar. Anos após os crimes, crianças que brincavam na então pedreira morreram afogadas na chuva após a água ficar represada na cratera.

"Muitos têm medo, mas é um lugar importante para a natureza da cidade", explica a paisagista Elisa Nascimento, 56, moradora da região, que há décadas convive com todo tipo de boato.

Homem posa em frente à cratera da antiga pedreira do Jardim Educandário
Homem posa em frente à cratera da antiga pedreira do Jardim Educandário Imagem: Reprodução

Há quem diga que o terreno, usado no passado para descarte ilegal de entulho e playground improvisado, teria servido como campo de desova de corpos durante a ditadura militar, o que nunca foi comprovado.

Hoje, a luz que passa por entre as volumosas copas das árvores lança sombras no solo, tornando o ambiente já silencioso uma imensa ilha de escuridão na metrópole, especialmente à noite.

Há mais de 40 anos, a população exige do poder público que o local seja aproveitado de maneira mais segura e com acesso à natureza. Nas décadas de 1980 e 1990, representantes do bairro pediram o aterramento da cratera e fizeram audiências com prefeitos e vereadores para evitar mais mortes. Nada foi feito.

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Os crimes

Em uma noite de março de 1982, quatro amigos —três mulheres e um homem— voltavam a pé de uma festa de casamento quando foram parados por três homens armados com facas e uma arma de fogo.

Parecia mais um assalto de ladrões conhecidos no bairro: Laércio Basílio de Lima "Capá", Carlos Barbosa Nascimento "Carlão" —os dois com 18 anos— e um menor de idade identificado como Augusto "Japonês". A imprensa os batizou de "As Feras do Educandário".

AVISO: O trecho a seguir contém descrição de violência e pode servir de gatilho

O trio ordenou que o grupo entrasse na mata e tirasse a roupa, segundo relato de uma sobrevivente. Eles foram torturados. "Você sabe nadar?", perguntou um dos assaltantes ao único homem do grupo, que foi amarrado. A caminho da pedreira, os agressores riam.

O homem de 22 anos, que não sabia nadar, foi rendido e se desesperou diante da cratera. Pediu para pouparem as duas amigas e a namorada, todas menores de idade, mas as três sofreram violência sexual.

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Duas adolescentes foram abusadas no casarão em ruínas próximo à pedreira, que por anos ganhou fama de ser um antigo castelo mal-assombrado. O homem assistiu à namorada ser violentada e foi lançado na pedreira.

"Se você pular certinho no centro da lagoa, você sobrevive", disse, segundo relato, um dos ladrões. O corpo só foi encontrado dias depois. Uma mulher morreu esfaqueada e as duas sobreviventes foram internadas em estado grave. As ações duraram cerca de três horas.

"Lembro que era um lugar abandonado para onde elas foram arrastadas, com uma escadaria antiga, uma piscina cheia de folhas abandonadas. Um cenário de terror, mesmo. O que fizeram comigo levarei para sempre", diz ao UOL uma das sobreviventes, que se mudou de São Paulo após o crime e preferiu não revelar a identidade.

Quando decidiram matar a gente com facadas, eu escutava tudo. Me arrastei na direção da minha amiga e falei para ela ficar calma, que haviam ido embora. Ela estava com os olhos abertos, mas depois descobri que já estava morta. Me arrastei e consegui ajuda de um vizinho, que buscou outra vizinha com telefone em casa para chamar a polícia.
Sobrevivente dos assassinatos do Educandário

Os homens foram presos e condenados a 38 anos de prisão por assalto, estupro e homicídio. Laércio, apontado como líder do trio, voltou a praticar crimes nos anos 2000, quando foi solto e teve o restante da pena perdoada pela Justiça.

O paradeiro das outras duas "feras" é desconhecido. Augusto "Japonês", na época menor de idade, foi o primeiro a ser preso pela polícia nos anos 1980. Segundo moradores, a família possuía comércios, mas se mudou do Educandário após a prisão e nunca mais retornou. Carlão foi o último a ser preso pela Rota. Os últimos registros penitenciários datam dos anos 1990.

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O fim da pedreira e uma nova era

A pedreira permaneceu fechada por mais de uma década após os crimes. O terreno foi comprado no início dos anos 1990. Incorporadores taparam o buraco e construíram casas no local. Moradores reivindicam a criação de um parque em outra parte do terreno, de 40 hectares.

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Imagem: Arte/UOL

A terra foi mantida intocada por diferentes proprietários durante décadas, até passar por uma recente escalada de valorização.

A conquista de uma área verde em São Paulo pode demorar anos. O Plano Diretor de São Paulo aprovado em 2014 encomendou 167 parques, mas apenas 11 foram criados até 2023.

O parque Augusta, na região central da Bela Vista, demorou duas décadas de protestos e cerca de 50 anos de indefinição para sair do papel. O parque Alto da Boa Vista, na zona sul, levou quase trinta anos e milhares de reais de uma associação de bairro para bancar ações judiciais.

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Assim como a pedreira, esses lugares também foram envolvidos em crimes de repercussão na cidade, descarte ilegal de entulho e mais uma porção de lendas.

Em 2011, o condomínio construído sobre a extinta pedreira do Educandário foi multado por presença de metano no solo. Havia o risco de explosão. O problema resgatou a lembrança dos crimes e obrigou o empreendimento a reforçar o sistema de filtragem.

Imagem área da mata do Jardim Educandário; pedreira ficava onde hoje é condomínio (alto à esq.)
Imagem área da mata do Jardim Educandário; pedreira ficava onde hoje é condomínio (alto à esq.) Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

"A Terra, a Mãe Gaia, estava descontando todos os males que fizeram com ela", diz a moradora Célia Motoki, 63, que desde o início dos anos 2000 denuncia à imprensa a falta de fiscalização sobre a liberação do gás. "Mas, com um parque em cima, ela vai se acalmar."

Segundo a imobiliária Carvalho Hosken, dona do terreno, 48% dos 26,8 hectares onde foi autorizada a construir ganharão imóveis residenciais. A Prefeitura de São Paulo diz que áreas próximas têm previsão de virar parque, ainda em fase de planejamento. Não há previsão de abertura.

A história das "feras" e da pedreira ainda deixam lembranças traumáticas, mas os moradores querem uma nova história. Eles vêm participando de audiências públicas na Câmara dos Vereadores, realizando limpeza nos arredores e reuniões. Chegaram a um novo nome ao lugar: Mata Esmeralda.

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Ernesto Maeda posa ao lado da mata do Jardim Educandário
Ernesto Maeda posa ao lado da mata do Jardim Educandário Imagem: Fernando Moraes/UOL

"Temos aqui uma fauna e uma flora rica que precisa ser preservada", defende o morador e ativista ambiental Ernesto Maeda, 63 anos, enquanto caminha próximo às árvores com óculos escuros, por onde cai um leve suor fruto de mais um dia de limpeza da mata onde se aventurou na infância.

"Eu estou aqui desde menino. Posso dizer: me lembro de tudo."

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