Elza Soares e Nicinha são homenageadas em nomes científicos de formigas

No papel, Elza Soares e Nilce de Souza Magalhães (a Nicinha) têm alguma coisa em comum. Ambas nasceram em famílias numerosas de origem humilde: uma na Vila Vintém, na capital do Rio de Janeiro, em 1930; a outra, em um seringal de Xapuri, no Acre, em 1965. Estudaram pouco. Elza teve que parar de ir à escola aos 12 anos porque o pai entendia que educação não era para mulheres. Foi fazer faxina. Nicinha, que começou a trabalhar cedo como cozinheira em um garimpo, estudou até a quarta série, lia e escrevia com dificuldade, mas fazia cálculos muito bem.

As duas tiveram filhos cedo demais. Elza, com apenas 13 anos, depois de ser forçada a se casar com o seu próprio estuprador. Nicinha, aos 17 anos, deu à luz um menino; nos anos seguintes, mais quatro meninas. Perderam filhos também. O segundo filho de Elza morreu de fome, segundo contava. Nicinha perdeu seu primogênito ainda bebê.

Parente do gênero Leptogenys, imagem que ajuda a entender como elas usam suas mandíbulas para arrastar presas até o ninho.
Parente do gênero Leptogenys, imagem que ajuda a entender como elas usam suas mandíbulas para arrastar presas até o ninho. Imagem: froggy143/Guatemala Inaturalist.org

Cada uma a seu modo, porém, Elza e Nicinha lutaram aguerridamente pelas causas em que acreditaram. Uma por meio da música. A outra, pela proteção do rio Madeira, em Rondônia, o que provavelmente motivou o seu assassinato a tiros, em 2016. E, por uma das ironias do destino, acabaram eternizadas pela entomologia, nos nomes científicos de duas novas espécies de formigas descritas pelo Laboratório de Mirmecologia Neotropical, do Departamento de Zoologia da UFPR: a Leptogenys elzasoares e a Dinoponera nicinha. No formato abreviado do nome científico, o nome das brasileiras fica mais visível: L. elzasoares e D. nicinha.

Antes de falarmos das histórias por trás dessas homenagens e das características de cada formiga, é preciso pontuar que há quem diga que a sociedade das formigas é a mais feminina das sociedades de insetos. Talvez das sociedades em geral.

O professor John Edwin Lattke Bravo, do Programa de Pós-Graduação em Entomologia da UFPR, que orientou as pesquisas que trataram das novas espécies de formigas, concorda. "As colônias de formigas são um matriarcado total", diz.

Nilce de Souza Magalhães era uma das pessoas atingidas pela construção de Jirau, onde foi achada morta
Nilce de Souza Magalhães era uma das pessoas atingidas pela construção de Jirau, onde foi achada morta Imagem: MAB/ Divulgação
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Lattke explica que as formigas machos só estão presentes nas colônias no breve período do acasalamento, para participar dos voos nupciais.

"São eventos importantíssimos, em que as rainhas fecundadas vão tentar estabelecer novos ninhos, mas a taxa de mortalidade delas é elevada por conta dos numerosos predadores. A taxa de mortalidade dos machos é absoluta. Todos eles morrem logo, acasalados ou virgens", conta o pesquisador, que é também o curador geral da Coleção Entomológica Padre Jesus Santiago Moure, iniciada na década de 1950 pelo entomologista Jesus Santiago Moure, um dos patronos dessa área no Brasil.

A Leptogenys elzasoares foi encontrada pelos cientistas em uma área de mata virgem na Amazônia brasileira, em Manaus. Acredita-se, porém, que o inseto não seja nativo dessa região. Talvez estivesse no meio de uma migração sazonal ou fugindo de um ataque de formigas inimigas. As operárias da L. elzasoares medem cerca de quatro milímetros, mas têm o corpo mais escuro, olhos relativamente grandes e as mandíbulas arqueadas, em forma de foice.

O pesquisador Leonardo Tozetto, que fez mestrado na UFPR sobre formigas neotropicais e hoje é doutorando na Universidade de Bonn, na Alemanha, homenageou Elza Soares porque é fã da cantora, falecida à época em que o artigo com a descrição da espécie foi publicado na Revista Brasileira de Entomologia.

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Não só gigante, mas com importância cultural

A D. nicinha é uma formiga gigante. Foi encontrada durante uma pesquisa na UFPR que realizou a revisão taxonômica do gênero Dinoponera, conhecido por possuir as maiores formigas do mundo, que chegam a ultrapassar 3,5 centímetros de comprimento total. O estudo publicado na revista European Journal of Taxonomy reuniu a maior quantidade de espécimes de machos e fêmeas já examinados até o momento e descobriu a nova espécie, batizada em homenagem à ativista ambiental e de direitos humanos.

Registrada nos estados do Amazonas e Rondônia, a nova espécie ocorre em ambientes florestais com alta pluviosidade e densa cobertura de árvores de médio a grande porte.

Em Porto Velho, as formigas foram encontradas em uma região próxima a áreas que sofrem impacto de uma usina hidrelétrica — o que tem relação com a ativista, que atuava no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) da região.

Pescadora, Nicinha foi uma ativista contra a obra da hidrelétrica de Jirau, que desviou o rio Madeira

A principal característica que diferencia a nova espécie das demais é o formato do nodo peciolar (a cintura da formiga). Em D. nicinha, quando visto lateralmente, esse nodo possui a margem dorsal convexa e com os ângulos anterior e posterior na mesma altura. Outra característica é o corpo brilhante e coberto por pêlos dourados.

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"Queremos enfatizar a conservação de Dinoponera porque muitas vezes não damos importância à extinção de insetos. No entanto, são parte fundamental de qualquer ecossistema. Em nosso estudo pudemos observar que os registros de Dinoponera vêm diminuindo desde o século passado", conta a doutoranda Amanda Martins Dias, também orientada por Lattke.

A pesquisa aponta que o histórico de desmatamento, incêndios florestais e conversão de paisagens naturais em paisagens agrícolas dificultaram tanto a sobrevivência dessas formigas quanto a oportunidade de estudá-las. Além da espécie D. lucida, que já figura na lista vermelha da fauna brasileira de espécies ameaçadas de extinção, é possível que outras populações também estejam em situações ameaçadoras.

"São formigas excepcionais, não somente pelo tamanho descomunal, mas também pela importância cultural para algumas comunidades brasileiras", afirma Lattke. "Embora o Brasil conte com uma comunidade de estudiosos ativos sobre as formigas e internacionalmente reconhecidos, ainda é possível descobrir novas espécies de insetos relativamente grandes".

*Por Camille Bropp e Aline Fernandes França originalmente em: ciencia.ufpr.br

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