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Sede da Copa do Mundo, Qatar é acusado de 'escravidão moderna'; entenda

Trabalhadores em frente ao estádio Lusail, em Doha, no Qatar, que será usado na Copa do Mundo de 2022 - Tiago Leme/UOL
Trabalhadores em frente ao estádio Lusail, em Doha, no Qatar, que será usado na Copa do Mundo de 2022 Imagem: Tiago Leme/UOL

Camilla Freitas

19/11/2022 06h00

Estádios modernos, centenas de grandes prédios espelhados, infraestrutura moderna por todas as cidades, o Qatar chega a parecer um sonho futurista. Mas as novas estruturas construídas para receber a Copa do Mundo de 2022 carregam uma marca sombria.

Uma reportagem do jornal britânico The Guardian revelou que 6.500 operários morreram desde que o país asiático recebeu o direito de sediar o evento em 2010. O governo contesta esse número.

Dados oficiais afirmam que 40 operários que trabalhavam na construção dos estádios da Copa morreram desde o início das obras. Desses, apenas três teriam morrido em razão do trabalho.

Obras próxima ao local em que está sendo contruído o estádio Lusail, em Doha, no Qatar, que será usado na Copa do Mundo de 2022 - Tiago Leme/UOL - Tiago Leme/UOL
Obras próxima ao local em que está sendo contruído o estádio Lusail, em Doha, no Qatar, que será usado na Copa do Mundo de 2022
Imagem: Tiago Leme/UOL

Em meio a essa situação, entidades internacionais e até seleções como a alemã, holandesa e norueguesa denunciaram as violações trabalhistas e de direitos humanos no país. "O Qatar é o lugar onde queremos ser campeões do mundo, mas não podemos deixar de olhar fora da caixa. As condições para os trabalhadores imigrantes são terríveis", afirmou um comunicado dos holandeses.

Quem são os operários da Copa do Mundo no Qatar?

A maior parte dos trabalhadores da construção civil no país da Copa inclui pessoas da Índia, Paquistão, Bangladesh, Nepal, Sri Lanka, Filipinas e do Quênia. Juntos, os imigrantes destes países somam 1,3 milhão de pessoas.

Contudo, de modo geral, mais de 80% da população de 2,8 milhões de habitantes do Qatar é formada por estrangeiros.

O que se sabe sobre o trabalho dos imigrantes no Qatar?

Denúncias de entidades internacionais, como a Anistia Internacional, falam em diversas violações trabalhistas como problemas com a segurança dos trabalhadores, jornadas exaustivas em temperaturas que podem superar os 50°C no verão, moradias precárias, atraso de salário e, principalmente, a kafala.

A kafala é um sistema que proíbe o trabalhador estrangeiro de mudar de emprego sem a autorização do atual patrão. Nos últimos anos, o Qatar aboliu oficialmente a kafala, mas a Anistia Internacional afirma que o sistema continua a ser utilizado.

Trabalhadores da construção civil no país da Copa entrevistados pelo UOL revelaram terem sofrido ameaças por parte dos patrões quando fizeram o pedido para mudarem de emprego.

Mas o que é escravidão moderna?

Você pode chamar de trabalho escravo moderno, trabalho análogo ao de escravo ou trabalho escravo contemporâneo, mas todos se referem à mesma coisa. O trabalhador está em situação de restrição de liberdade, ou está em condições degradantes de trabalho, ou está em jornada exaustiva, ou está em situação de servidão por dívida ou tudo isso junto.

O que define um trabalhador posto em situação de escravo:

Trabalho forçado: quando há o cerceamento do direito de se desligar do patrão

Servidão por dívida: que é forçar alguém a adquirir uma dívida de forma fraudulenta e prender a pessoa por isso

Condições degradantes de trabalho: se trata de um trabalho que nega a dignidade humana colocando em risco a saúde, a segurança e a vida da pessoa

Jornada exaustiva: significa levar o trabalhador ao completo esgotamento dada a intensidade do trabalho, da exploração, que também coloca em risco sua saúde e vida

Como identificar o trabalho escravo moderno?

Ao menos no Brasil, você, enquanto cidadão comum, não pode identificar se um trabalhador está ou não em situação de escravidão moderna. Quem identifica escravidão no país são os auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho, policiais federais, civis e militares, defensores públicos da União e procuradores da república.

Então, o que acontece no com os trabalhadores imigrantes no Qatar é escravidão moderna?

Trabalhadores durante as obras para o Khalifa International Stadium, no Qatar - AFP - AFP
Trabalhadores durante as obras para o Khalifa International Stadium, no Qatar
Imagem: AFP

Para Ambet Yulson, secretário-geral da Internacional de Trabalhadores da Construção Civil e Madeira (ICM), sim. Presidente de um sindicato internacional de operários, ele participou de 25 inspeções no Qatar desde 2017.

"Muitas pessoas vão pro Qatar, pagam as taxas de recrutamento, chegam lá e não recebem salário. Vi centenas de casos de operários que ficaram dois anos sem receber. O que eles vão comer?", afirmou Yulson em entrevista ao UOL Esporte. "Esse é um caso que vai contra a convenção internacional sobre trabalhos forçados. Isso é escravidão moderna".

O que é possível fazer, agora, para mudar esse cenário?

Em maio deste ano, a Anistia Internacional pediu para que a Fifa que pague uma indenização de pelo menos 440 milhões de dólares (cerca de dois bilhões de reais) aos trabalhadores estrangeiros que passaram por violações trabalhistas no Qatar.

Além disso, diversos países europeus e seleções farão protestos e boicotes à Copa do Mundo no país asiático. Segundo o colunista do UOL Jamil Chade, a Hummel, fornecedora dos materiais esportivos, afirmou que a seleção da Dinamarca usará camisetas em alusão às violações de direitos humanos no país asiático.

Trabalhadores em frente ao estádio Lusail, em Doha, no Qatar, que será usado na Copa do Mundo de 2022 - Tiago Leme/UOL - Tiago Leme/UOL
Trabalhadores em frente ao estádio Lusail, em Doha, no Qatar, que será usado na Copa do Mundo de 2022
Imagem: Tiago Leme/UOL

Sete das principais cidades francesas, entre elas Paris, Lille, Bordeaux, Estrasburgo, anunciaram que não organizarão telões nas praças centrais para que a população possa acompanhar os jogos. "É impossível para nós ignorarmos os muitos alarmes das ONGs sobre o abuso e exploração de trabalhadores migrantes", disse a prefeita de Estrasburgo Jeanne Barseghian.

Os boicotes costumam ser usados para pressionar economicamente principalmente empresas e há registros de muitos casos bem sucedidos. Os relatórios de organizações não governamentais contra as violações trabalhistas no Qatar, por exemplo, fizeram com que o país instituísse ao menos algumas mudanças como a implementação do salário mínimo.