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Vacina no prato? Feijão que comemos tem genoma de vírus e resiste a doença

Giacomo Vicenzo

de Ecoa, em São Paulo (SP)

15/10/2022 06h00

O feijão está no prato da maioria dos brasileiros, sendo um dos alimentos que compõem a cesta básica. Mas o grão passa por alguns apuros na lavoura, principalmente com infestações da mosca-branca, inseto que pode ser vetor da doença conhecida como 'mosaico dourado'. Essa moléstia deixa as plantas manchadas e fracas, podendo fazer com que toda uma safra se perca.

A leguminosa, que costuma fazer par com o arroz, está entre as proteínas vegetais mais baratas do mercado, mas a doença, que chegou ao país, entre o biênio de 2000 e 2001 já inviabilizou safras inteiras de feijão no Brasil.

Para encarar esse problema no campo e que se reflete no preço na gôndola, pesquisadores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) desenvolveram o feijão RMD (resistente ao mosaico dourado), criando uma variedade de grão transgênico, que é resistente ao vírus transmitido pela praga.

Aprovado para uso no Brasil em 2011, o grão se tornou disponível no mercado apenas neste ano e tem a 'tecnologia aplicada no feijão carioca', que já está disponível nas prateleiras dos supermercados e possivelmente no seu prato do jantar ou do almoço de hoje.

Ecoa conversou com pesquisadores envolvidos no desenvolvimento do grão para entender como funciona na prática o seu desenvolvimento e os reais benefícios do uso desse tipo de organismo transgênico.

Feijão com menos agrotóxicos e resistente às mudanças climáticas

2 - Getúlio Yokotobi/Arquivo Pessoal - Getúlio Yokotobi/Arquivo Pessoal
Detalhe da plantação de feijão RMD de propriedade de Getúlio Yokotobi
Imagem: Getúlio Yokotobi/Arquivo Pessoal

De acordo com Francisco Lima Aragão, pesquisador da Embrapa no centro de recursos genéticos e biotecnologia, que atuou na criação do feijão RMD, apenas uma mosca-branca por pé de feijão pode ser suficiente para pôr fim em toda uma plantação dos grãos comuns.

"Para manter o nível dos insetos baixos, no interior do Brasil, [em estados] como Paraná, Goiás e Minas, é comum que os produtores façam até 20 aplicações [de agrotóxicos] durante o ciclo da planta, que tem cerca de três meses", explica Aragão.

"Em contrapartida, a mosca-branca se torna cada vez mais resistente aos pesticidas, que mesmo aplicados não garantem que a planta não será contaminada pelo vírus que causa nanismo e cria o abortamento das flores, vagens e grãos", completa.

Já com o uso do feijão transgênico (feijão RMD), as aplicações caíram para três aplicações de agrotóxicos durante todo o ciclo, de acordo com o pesquisador, pois se cria uma espécie de 'autodefesa' da própria planta.

"Esta tecnologia permite que se tenha mais áreas que poderiam cultivar feijão, inclusive aquelas que deixaram de plantar feijão por razões sanitárias. Desse modo, é de se esperar que o Brasil consiga reagir mais rapidamente a uma eventual perda de safra por razões climáticas em alguma região", defende Alcido Wander, pesquisador da Embrapa, na área de socioeconomia.

"Não podemos esquecer, que estamos falando de feijão carioca, para o qual não existe mercado externo. Portanto, precisamos de uma produção interna muito ajustada ao consumo brasileiro, pois não conseguimos exportar excedentes, nem importar quando falta o produto no mercado interno", continua Wander.

Uma 'vacina' para feijão

Assim como outros alimentos transgênicos, o feijão RMD tem genes que são transferidos de uma espécie para outra. No caso do grão, a proposta é que encontre maior resistência ao vírus, e para tal, se 'recorta' um genoma do próprio vírus, que é 'colado' no do feijão.

"Fizemos uma construção que usa o próprio genoma do vírus, e geramos essa construção genica, que faz com que o feijão produza pequenas moléculas de RNA que são correspondentes ao genoma do vírus. Quando a planta é infectada pelo vírus, ele encontra essa barreira que impede que o vírus se replique. É como se fosse uma vacina de RNA, mas que está no próprio gene", explica Aragão.

Entre os benefícios está o menor uso de inseticida, compactação do solo [por diminuição da circulação de máquinas] e menor uso de combustíveis fósseis.

Quando se aplica o inseticida para matar a mosca-branca também se elimina insetos benéficos, o que afeta a biodiversidade da região. Com o menor uso do inseticida é preciso usar menos água no processo e menos maquinário que é movido a combustível fóssil

Além disso, Aragão aponta que a falta de fiscalização em todo o tempo pode fazer com que alguns produtores ultrapassem a quantidade indicada de inseticidas ao cultivarem feijões sem a resistência e passarem por uma infestação do inseto.

"Existe a lei e existe a realidade. O correto é usar somente produtos para a cultura determinada e na quantidade indicada, mas não existe um fiscal no campo o tempo todo para saber o que o produtor está usando. Com o feijão RMD não será preciso esse excesso de uso de pesticidas", afirma o especialista.

Feijão transgênico vale mesmo a pena na prática?

1 - Arquivo pessoal de Getúlio Shoiti Yokotobi - Arquivo pessoal de Getúlio Shoiti Yokotobi
Plantação de feijão RMD na região de Pilar do Sul (SP)
Imagem: Arquivo pessoal de Getúlio Shoiti Yokotobi

Aragão explica que em safras baixas é comum que o feijão aumente de preço ao consumidor final, e isso se deve não apenas às pragas enfrentadas nas lavouras, mas também a grupos atravessadores que tem grande quantidade de armazenamento, e compram o grão na baixa de preço e os vendem na alta.

"O feijão varia muito de preço e isso gera grupos atravessadores, que compram para vender depois aos cerealistas que empacotam. Esperamos que o feijão RMD colabore no estabelecimento do preço do grão e auxilie pequenos produtores que não têm condição de armazenamento".

Diretamente no campo, Getúlio Yokotobi, produtor e empresário na distribuição e comercialização de cereais em Pilar do Sul (SP), cultiva tanto a variedade do 'feijão RMD', como variedades não transgênicas. O produtor afirma que é possível usar menos defensivos agrícolas na variedade geneticamente modificada, mas não de abandonar o uso completamente.

O produtor estima que com o uso do "feijão RMD", mesmo sendo afetada pelo inseto, as perdas podem variar de 20% a 40%. "Uma vantagem se considerarmos perdas de até 100% em feijões sensíveis ao vírus do mosaico dourado [feijões não transgênicos]", aponta o produtor.

"As duas culturas são cultivadas em épocas distintas . Na primeira safra que não há uma pressão da mosca-branca , cultiva-se o feijão convencional pela não necessidade de resistência e por uma escolha com grão de maior valor comercial . E nas épocas mais críticas se cultiva o RMD ( transgênico ) por questão de segurança na produtividade", esclarece Yokotobi.

A taxa de royalties cobrada pela Embrapa sobre o feijão RMD é 2% menor do que sobre os outros grãos lançados comercialmente, e o produtor pode multiplicar livremente os grãos comprados.

Ter um feijão transgênico no prato é seguro?

"Foi feita uma avaliação muito detalhada da segurança desse feijão. Entre as quais, se afetava a cultura do feijão com o meio ambiente ou os nutrientes do grão. O feijão RMD é muito similar aos convencionais, e todos os organismos transgênicos só são aprovados se forem similares aos convencionais", explica Paulo Barroso, Pesquisador da Embrapa Territorial e presidente da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança).

Barroso explica que há muitos anos se tentou encontrar um feijão resistente ao vírus do mosaico dourado, mas infelizmente não foi possível. "A única forma de trazer essa resistência foi usando a engenharia genética", afirma o presidente da CTNBio.

Ainda assim, os organismos transgênicos de forma geral são vistos com preocupação por alguns órgãos e setores da sociedade. Entre os quais o IDEC (Instituto de Defesa ao Consumidor), que aponta em sua cartilha sobre o tema, que grande parte dos estudos são feitos pelas próprias organizações que criaram o produto e muitas vezes são detentoras da patente dos mesmos.