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O que é apropriação cultural? Conceito tangencia do colonialismo ao nazismo

Ziviani/iStock
Imagem: Ziviani/iStock

Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

22/01/2022 06h00

O conceito de cultura reúne em si uma série de elementos de um grupo, nação ou povo, como vestimentas, comidas típicas, crenças religiosas, línguas e outros aspectos sociais. Ao longo da história da humanidade, as culturas passaram por modificações, seja pelo contato pacífico com outros povos e outros modos de vida, seja por outros fatores, como colonização e guerras.

Mas, então, o que é apropriação cultural? Quando afirmar que uma pessoa ou grupo está se apropriando de uma cultura? Como balancear essa agregação e troca de tradições culturais de forma respeitosa? Ecoa conversou com um doutor em antropologia e um sociólogo historiador de arte para responder a essas e outras perguntas.

O que é apropriação cultural?

"Apropriação cultural ocorre quando tomamos para nós aquilo que originalmente pertencia ao mundo e ao dia a dia de outras pessoas. Mas sem que haja um interesse em ouvir, dialogar e aprender com essas mesmas pessoas sobre os usos e costumes relacionados às coisas que despertam o nosso interesse", explica Messias Basques, doutor em Antropologia pelo Museu Nacional da UFRJ.

Já o sociólogo e historiador de arte Marcos Horácio Gomes Dias, doutor em história social, enxerga a apropriação cultural como uma forma de subjugar a "cultura do outro".

"É quando se apropria de uma cultura e seleciona somente o que interessa. Com o tempo, aquilo parece que é de quem se apropriou, que por sua vez passa a inferiorizar quem era o real originário daquela cultura e tradição", aponta Dias.

Essa lógica pode seguir tanto entre grupos quanto em culturas maiores. "Pode ser o ocidente pegando coisas do oriente e vice-versa, por exemplo. Mas grupos sociais como negros e LGBTQIA+ também podem passar por isso", aponta o historiador de arte.

O que é apropriação cultural na prática?

Como exemplo prático, Basques aponta o uso da "fantasia de indígena". "Esta 'fantasia' geralmente consiste no uso de um cocar de penas inspirado em povos indígenas que há décadas são estereotipados em filmes norte-americanos. Até mesmo nos seus contextos originais, nas aldeias e territórios indígenas, esses artefatos não são usados por qualquer pessoa", explica.

Para o antropólogo, longe de prestar uma homenagem, quem faz esse tipo de uso está se apropriando culturalmente de outras tradições. "Sair às ruas assim não é uma homenagem que se possa fazer a esses povos. Mas sim, é apropriar-se de um elemento da sua cultura, com o objetivo de chamar a atenção para si, e não para o outro de onde provém justamente a tal 'fantasia' ou um artefato como o cocar", explica.

Ele afirma que o problema não reside no interesse por aquilo que vem de fora ou de outras culturas, mas sim no fato de se apropriar disso sem nenhum interesse em aprender com essa mesma cultura sobre os usos e costumes. "Quem realmente se dedica a ouvir, dialogar e a conhecer o outro aprende a respeitá-lo, e não apenas a se apropriar de sua cultura em benefício próprio", completa.

Quando surge o conceito de apropriação cultural e qual sua importância?

A absorção da cultura entre povos acontece desde a Antiguidade, sendo um processo inerente às sociedades. "O ser humano sempre aprendeu coisas com outros povos, trocava com outras culturas. Então, como definir o que é de quem?", indaga o historiador de arte.

Dias traz um exemplo de apropriação cultural do ocidente com as culturas orientais: quando se pensa em macarrão, logo vem à mente a cozinha italiana. No entanto, o ingrediente não nasceu na Itália, mas sim na China; os italianos modificaram seu preparo e impuseram outra identidade ao prato.

"Estudiosos de antropologia apontam há muito tempo que não há nada que possa ser considerado puro, seja cultura ou etnia. Pois pertencemos a um grupo do momento que partilha valores morais e outras questões sociais, mais do que questões propriamente biológicas", afirma Dias.

Entretanto, ele enxerga que há uma luta identitária e justa, sobretudo de grupos excluídos, que têm sua cultura apropriada por outros em uma relação de dominância e sem respeito a essas origens.

"O que está em jogo é justamente que determinados grupos e países, como os da Europa e Estados Unidos, se apropriaram da cultura do mundo e subjugaram todo o resto. Agora, todos os grupos excluídos estão cobrando a sua parte da identidade, que lhes foi roubada. São todas questões que não foram resolvidas e precisam ser debatidas até que sejam", diz o historiador de arte.

O debate sobre apropriação cultural como o conhecemos hoje é recente e data das últimas décadas. Entretanto, Dias lembra que, ainda que não nomeado, essa problemática começa a ser vista já após a Segunda Guerra Mundial, principalmente nos períodos posteriores ao nazismo.
"É interessante lembrar que o próprio nazismo usou crianças loiras judias para fazer propaganda nazista, apresentando esses jovens como modelos da raça ariana. Se diz que, com o Nazismo, a Europa fez consigo mesma o que fez com o resto do mundo", comenta o sociólogo.

Como 'consumir' e admirar outras culturas de forma respeitosa?

Comer um prato de macarronada, por exemplo, não é uma apropriação cultural. "Há também produtos que se tornaram parte indissociável da cultura brasileira e são originalmente indígenas, como a mandioca e o açaí. Não se trata de apropriação cultural preparar tapiocas ou comer tigelas de açaí", comenta Basques.

No entanto, conhecer as origens das coisas pode ser um caminho interessante e respeitoso com outras culturas. "É lamentável que nós saibamos que lanches de fast food são tipicamente norte-americanos, que existem chás tradicionalmente ingleses e chapéus panamenhos, mas que o Brasil e os brasileiros quase nada saibam ou queiram saber sobre os povos indígenas que estão aqui e agora, entre nós, no presente, no mesmo país em que vivemos", completa o antropólogo.

Em 2020, a marca Prada foi acusada de apropriação cultural por lançar uma coleção de sandálias de couro trançado muito semelhante às tipicamente brasileiras feitas por artesãos da Região Nordeste. Levando o nome da marca, o calçado custa cerca de 80 vezes mais do que o vendido nas feiras de Caruaru. O apontamento foi feito na coluna de Milo Araújo em Ecoa.

Para Basques, é necessário cuidado ao se consumir itens de uma outra cultura e é preciso se fazer algumas perguntas. "Consumo é um ato político, que revela as nossas ideias, valores e atitudes. Antes de comprar ou usar qualquer coisa, não custa nada refletir: o que eu sei sobre essa coisa que me chama a atenção? De onde ela vem? Quem a produz? Quanto essa pessoa ganha por esse produto? O que mais eu poderia aprender com essa pessoa, além de usar um objeto que faz referência a ela e à sua cultura?", aponta.

O antropólogo ainda orienta que, se o interesse for real, o ideal é comprar itens diretamente dessas pessoas. "Se você tem um interesse sincero pelos povos indígenas e gostaria de ter um artefato na sua casa ou para vestir, por que não comprar de artistas indígenas?", orienta.

Basques ainda aponta que o consumo de produtos propriamente indígenas, por exemplo, pode ser uma alternativa respeitosa de apreciar a cultura. E traz um exemplo:

"Há iniciativas recentes e bem-sucedidas, como a pimenta produzida pelo povo indígena Baniwa, cujo território se encontra no estado do Amazonas, na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela. Isso mostra que podemos incrementar à nossa alimentação e gastronomia produtos indígenas, mas reconhecendo os direitos autorais e econômicos das pessoas e comunidades que plantam, colhem, processam e comercializam essas pimentas - que hoje podem ser compradas inclusive pela internet", comenta.