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Democracia na prática: Como equalizar recursos para campanhas eleitorais?

A arquiteta e urbanista Duda Alcântara coarticulou uma ação para criação de plataforma para doações para campanhas da Rede Sustentabilidade - Arquivo pessoal
A arquiteta e urbanista Duda Alcântara coarticulou uma ação para criação de plataforma para doações para campanhas da Rede Sustentabilidade Imagem: Arquivo pessoal

Beatriz Mazzei

Colaboração para Ecoa, do Alma Preta

23/09/2020 04h00

Em poucos dias, a pré-candidata Lia Esperança, moradora e líder comunitária da favela da Vila Nova, em São Paulo, fez com que cerca de 300 pessoas se mobilizassem para garantir que a sua sigla (Rede Sustentabilidade) destinasse verbas do fundo eleitoral para a sua campanha desse ano. Com a estratégia de aproximar a base eleitoral das decisões do partido, a Rede Sustentabilidade estreia um modelo inédito de participação popular no processo eleitoral.

Com ação articulada pela arquiteta e urbanista Duda Alcântara e pelo lab-hacker Pedro Markun, ambos da Rede Sustentabilidade, legenda oficializada em 2015, a população pode doar via internet um "vale eleitoral" para o(a) pré-candidato(a) que mais o representa pela plataforma do Voto Legal, fundada e desenvolvida por Thiago Rondon.

No início da campanha, o partido irá contabilizar os vales da plataforma e dividir o dinheiro do fundo eleitoral de forma proporcional, fazendo com que as candidaturas que conseguirem mobilizar mais apoio recebam uma quantia maior. O vale também pode ser doado por pessoas de fora da capital com o percentual de 50%. Além do vale, é possível fazer doações de dinheiro como pessoa física.

"Por ser algo novo, nós tivemos receio de que não houvesse o engajamento das pessoas, então decidimos que do valor em dinheiro que conseguirmos com o fundo eleitoral, cerca de 45% será distribuído igualmente entre todos os candidatos, e os outros 55% estão nesse processo do vale. É uma forma da gente beneficiar os candidatos que tem mais rua", conta Duda Alcântara, porta-voz da Rede em São Paulo. Por rua, ela fala dos candidatos que mobilizam mais a sua base eleitoral, ainda que, em tempos de pandemia, isso aconteça de forma digital.

Com a estratégia do vale eleitoral, as candidaturas serão fortalecidas financeiramente e pela possibilidade de alcançar seus eleitores antes do início da campanha eleitoral, a partir do engajamento coletivo para a doação do vale ou de dinheiro. A Rede Sustentabilidade espera que 20 mil pessoas irão participar do processo dos vales.

Desigualdades na distribuição dos recursos

Dentro do processo democrático, a campanha eleitoral é uma ferramenta utilizada para dar visibilidade e garantir a base eleitoral dos candidatos em ano de eleição. No Brasil, o financiamento dessas campanhas ocorre de forma mista por meio de recursos públicos e privados de pessoas físicas. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu as doações empresariais para campanhas sob a alegação de desequilíbrio na disputa, além de facilitar o favorecimento ilícito de interesses privados dentro da política.

Sem a verba privada como recurso de campanha, em 2017 foi criado o Fundo Eleitoral, composto por dotações orçamentárias da União, repassadas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que utiliza critérios de distribuição definidos em lei: 2% do total é dividido igualmente por todos os partidos registrados no tribunal, 35% são divididos entre os partidos que tenham pelo menos um representante na Câmara dos Deputados - na proporção do percentual de votos obtidos por eles na última eleição -, 48% são divididos entre os partidos na proporção do número de representantes na Câmara, 15% são divididos na proporção do número de representantes no Senado.

De acordo com levantamento do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (Idea), 68,3% dos países oferecem algum tipo de financiamento público. Segundo especialistas, a escolha ocorre principalmente pelo entendimento da prática como uma forma mais democrática de distribuição de verba, que garantiria a todos os partidos terem acesso a algum recurso e não partirem do zero. A distribuição do fundo eleitoral é feita internamente sob a tutela de lideranças partidárias com pouca ou nenhuma influência dos candidatos e da população, o que acaba perpetuando os nomes de sempre dentro da política.

"A lógica da distribuição da verba entre os partidos é a da quantidade de cadeiras ocupadas, e, quando o dinheiro chega aos partidos, a preocupação é a garantia da ocupação dessas cadeiras para ter acesso aos fundos. Dentro desse sistema, apostar em uma candidatura nova é visto como um risco, o que acaba levando o mesmo perfil de pessoas para esses espaços: geralmente homens brancos de classe média alta", conta Juliana Marques, coordenadora do movimento Mulheres Negras Decidem, que busca fortalecer a democracia a partir da superação da sub-representação de mulheres negras nas instâncias de poder.

O maior investimento de recursos nas candidaturas masculinas e brancas é uma prática comum e antiga em diversos partidos de diferentes espectros políticos. De acordo com o estudo "Os Custos da Campanha Eleitoral no Brasil" da Fundação Getulio Vargas (FGV), entre 2002 e 2010, R$ 1,38 bilhão foi gasto em candidaturas masculinas, contra R$ 120 milhões gastos em candidaturas femininas.

A pesquisa aponta que, a partir de 2018, com o predomínio dos recursos públicos no financiamento de campanha, houve diminuição da desigualdade entre brancos e não brancos. Contudo, na última eleição, a distribuição de recursos não ocorreu de forma heterogênea entre os partidos tradicionais da disputa eleitoral.

DEM, MDB, PDT, PP/PPB, PSDB e PT investiram em média 20% do fundo em candidatos não brancos, autodeclarados como pretos, pardos ou indígenas e amarelos.

A cientista política Lara Mesquita - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A cientista política Lara Mesquita
Imagem: Arquivo pessoal

Segundo Lara Mesquita, cientista política e uma das pesquisadoras do estudo publicado pela FGV, o partido também tem cautela ao decidir a distribuição dos recursos porque não é vantajoso para a legenda investir em um candidato que, após a eleição irá agir de forma autônoma, sem defender as posições do partido. "A distribuição como é feita hoje tem diversas falhas, mas é um risco alto para recursos escassos. Por isso, precisamos tomar cuidado para não fortalecer o discurso que enfraquece os partidos. Não se conhece atualmente um país que tenha uma democracia sólida sem partidos fortes", pondera.

Participação popular e comprimento das cotas

"Quando eu fui candidata em 2018, passei por esse processo de não receber uma boa quantia para a minha campanha, então quando me vi do outro lado do balcão, tomando decisões pelo partido, quis envolver as pessoas nisso", conta Duda Alcântara, da Rede.

A ideia da participação popular é uma das formas de democratizar o processo. Dentro do sistema brasileiro, cada eleitor pode doar até 10% dos rendimentos brutos declarados no ano anterior à eleição e para incentivar essa prática, a justiça eleitoral regulamentou o uso dos crowndfunding, as famosas "vaquinhas". No caso da Rede Sustentabilidade, para as eleições municipais desse ano, já foram doados cerca de R$150 mil reais em dinheiro pela plataforma do voto legal.

Como alternativa, Lara Mesquita cita os "matching funds" presentes nos Estados Unidos e na Alemanha. Nesse sistema, as pequenas doações recebidas por pessoas físicas são completadas pelo poder público.

Para fortalecer a diversidade nas candidaturas, as cotas também estão em vigor. A lei brasileira assegura 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para candidaturas femininas e, a partir desse ano, a porcentagem também será aplicada aos candidatos negros. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) decidiu em agosto pela obrigatoriedade dos partidos em destinar recursos do fundo eleitoral de maneira proporcional à quantidade de candidatos negros e brancos.

A medida chegou ao tribunal a partir de uma consulta apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), pré-candidata à prefeita do Rio de Janeiro. Nesse processo, o TSE foi pressionado pela ação "Eleições Antirracistas", proposta pelo Instituto Marielle Franco e Educafro, em parceria com o Movimento Mulheres Negras Decidem e a Coalizão Negra Por Direitos. Para dar mais vazão ao problema da sub-representação negra nos espaços de decisão, o Instituto Marielle Franco lançou a PANE (Plataforma Antirracista nas Eleições), que traz uma série de ações para pressionar os partidos a viabilizarem a candidatura de mulheres negras e cobrar a garantia do maior número possível de candidaturas que defendam políticas antirracistas, feministas, populares e pró-população LGBTQIA+, que eram as pautas da vereadora Marielle Franco do PSOL. A esse conjunto de compromissos, a PANE dá o nome de "Agenda Marielle Franco".

Lançada também em 2020 por coletivos feministas, a campanha Fundo Delas incentiva a população a apoiar candidaturas de mulheres a cargos políticos e alerta para o cumprimento da cota. "A garantia do percentual mínimo de financiamento para candidaturas femininas estabelecido em lei é um compromisso para modificar o quadro de sub-representação feminina no campo político e um amadurecimento da democracia brasileira. Garantir que mulheres negras, brancas e indígenas tenham igualdade de acesso ao Fundo é avançar para fortalecer a democracia", sugere a campanha, em manifesto.