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Naja será exposta em SP: "Uma rainha", diz pesquisador do Butantan

Naja que picou estudante em Brasília ganha ensaio fotográfico no zoológico de Brasília antes de "tour" até São Paulo - Ivan Mattos/Zoológico de Brasília
Naja que picou estudante em Brasília ganha ensaio fotográfico no zoológico de Brasília antes de "tour" até São Paulo Imagem: Ivan Mattos/Zoológico de Brasília

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

21/08/2020 04h00

Como boa parte dos brasileiros nos últimos meses, a famosa cobra Naja está em quarentena. O lar onde cumpre o isolamento social é uma caixinha privativa, sossegada, localizada na zona oeste de São Paulo. Ela foi trazida para a capital após ganhar fama ao picar um homem indiciado por suspeita de tráfico de animais em Brasília.

Por pelo menos 30 a 40 dias, ela terá seu espaço respeitado para se adaptar à nova hospedagem, para onde foi levada após desembarcar de um voo comercial no aeroporto de Guarulhos na última quarta (12). Durante o período, ela será analisada e alimentada por alguns dos melhores especialistas em cobras do país, no Instituto Butantan.

A Naja será exposta ao público assim que o Butantan for reaberto - o que estava marcado para outubro, mas que agora não tem previsão. Ela também ficará à disposição para pesquisadores interessados em estudar seu comportamento, características físicas e veneno.

Por enquanto, os biólogos querem que ela fique menos estressada. Os últimos meses foram intensos, com fotos, memes, viagens, abandonos e, de certa forma, prestação de serviço público. Sozinha, a Naja desbaratou um esquema de tráfico de animais no Distrito Federal após picar e mandar para a UTI o suspeito Pedro Henrique Krambeck, que foi preso temporiarimente pelo crime.

A picada ajudou a Polícia Civil a indiciar 11 pessoas por um esquema de tráficos que envolve policiais, traficantes e familiares. No noticiário, há até um termo para os desdobramentos do episódio: "o caso Naja".

Para especialistas, a popularidade do "Caso Naja" é uma oportunidade de ouro para reforçar o respeito ao meio ambiente e aos animais. Um ponto positivo já foi notado: a Naja não foi vista como vilã, mas como uma vítima do ser humano e um alerta contra o tráfico.

Nativas do sudeste asiático, najas não vivem livremente no Brasil. Apesar disso, elas são reduzidas a objetos de desejo de colecionadores que financiam o tráfico de animais exóticos.

Outra naja

Não à toa, o acervo do Instituto Butantan já tinha em uma naja macho, uma possível fugitiva de um traficante. A espécie foi encontrada em Balneário Camboriú (SC) de um jeito que parece até com uma lenda urbana: bombeiros a flagraram enquanto nadava em uma caixa d'água.

Atualmente, o Butantan tem 1.350 cobras vivas que foram encontradas, doadas ou que foram reproduzidas em cativeiro para pesquisas e extração de veneno. Outra parte delas chega por meio de apreensões do tráfico de animais exóticos.

A presença das najas no Brasil é especialmente preocupante. Como não pertencem à fauna local, elas podem se reproduzir à vontade, sem predadores naturais, causando desequilíbrio ambiental, acidentes entre seres humanos e aparições surpresas, como no caso catarinense da caixa d'água.

Por ser uma estrangeira, cientistas também não produzem antídotos contra seu veneno. A única amostra nacional foi comprada pelo Instituto Butantan para casos de emergência entre pesquisadores. Parte do soro, porém, foi enviada às pressas, de avião, para socorrer Krambeck.

A naja produz veneno para se alimentar de roedores. Ou para se defender. A substância causa uma necrose localizada e pode levar um ser humano para a UTI em estado grave, em choque, até matá-lo.

Mudança de olhar para as serpentes

As serpentes estão em diversas mitologias como seres ardilosos, evitáveis, mas poderosos. A má fama é de origem bíblica, quando Satanás se transformou em uma serpente para convencer Eva a pecar no livro de Gênesis. Na mitologia grega, a poderosa e amedrontadora Medusa transformava em pedra quem olhasse para seu cabelo formado por serpentes.

Há dezenas de filmes dedicados ao ataque de cobras, como "Anaconda", de 1997, em que uma versão ficcional e gigantesca de sucuri aterroriza turistas na floresta amazônica. Na série "Harry Potter", o protagonista fala com cobras; uma delas, aliás, é mascote do vilão Voldemort.

A naja tornou-se especialmente popular por ser usada por encantadores de cobra no Oriente (spoiler: elas não são seduzidas pela música e são praticamente surdas. Na verdade, elas são "hipnotizadas" pela ponta da flauta molhada em xixi de rato).

São justamente a popularidade e a imagem folclórica das cobras alguns dos motivos para serem alvo dos traficantes.

Para o antropólogo Caetano Sordi, pesquisador do Núcleo de Estudos Animais, Ambientes e Tecnologia da UFRGS, a captura e posse de serpentes passou a sinalizar virilidade, uma diferenciação das "pessoas normais", e a reforçar um falso domínio sobre um animal tão temido. A mudança do campo para a cidade também fez com que os humanos deixassem de conhecer o poderio real das cobras e a interpretá-las como apenas pets que são fora do comum, ideia alimentada pelo tráfico, e vice-versa.

A Renctas (Rede Nacional de Combate ao tráfico de Animais Silvestres) estima que o tráfico ilegal de animais movimenta cerca de R$ 3 bilhões ao ano no Brasil. De acordo com a Polícia Civil do Distrito Federal, a Naja foi comprada pelo estudante de veterinária por um valor considerável: R$ 6 mil.

"A chave para acabar com o tráfico é meio clichê, mas é a educação ambiental. O ser humano precisa conhecer mais, respeitar e entender que serpentes e animais silvestres não atendem às nossas expectativas. A educação precisa ser contínua, até entendermos que não somos capazes de controlar tudo", diz o pesquisador do Butantan.

Casal de najas no Butantan, mas nada de "najinhas"

A Naja é supervisionada no Butantan por Giuseppe Puorto, um biólogo herpetologista com cerca de 40 anos de experiência em serpentes. Durante a quarentena e após esse período, ele é o responsável por acompanhar a saúde da famosa Naja — como evitar os piolhos de cobra — realizar exames e, no futuro, prepará-la para a plateia, ainda impedida de prestigiá-la. "A Naja está em uma dupla quarentena", pontua.

Foi Giuseppe quem organizou a vinda da Naja para São Paulo. Ele encomendou uma caixa de madeira de 1 metro e meio, maior do que a convencional, bem parafusada e feita exclusivamente para acomodá-la e paparicá-la.

Na mesma viagem, o instituto também recebeu uma víbora-verde Voguel, também peçonhenta, e mais cinco cobras de milho, espécie não peçonhenta. Todas foram vítimas do tráfico e vieram sozinhas, bem independentes. "A víbora chegou aqui muito zen, na paz. Já a Naja estava bem agitada", relembra. O especialista vetou a entrada da imprensa e de outros especialistas para acompanhar a recepção e a acomodação das serpentes.

Mesmo ainda reclusa, Giuseppe planeja usar a popularidade da Naja para promover educação ambiental nas redes sociais. "A Naja aparece em um momento crucial da história", diz. O tom do biólogo é de alguém habituado a palestras, claro e didático, e com a paciência de um professor que ouve as dúvidas mais triviais até o final.

"Ela passou a ser uma vedete, uma rainha, uma expoente na mídia. Estamos em uma pandemia onde ninguém enxerga o agente causador, o vírus. Nós vemos a Naja. E a população consegue percebê-la não como vilã, mas como uma vítima", pontua o herpetólogo.

A Naja que chegou é uma fêmea; a naja que já estava no instituto é um macho. Mas ainda não há planos de promover um novo casal. "Não temos um objetivo claro para ter várias 'najinhas' por aqui... Ainda", diz.

Perfil da cobra naja foi criado no Instagram - Reprodução/ Instagram - Reprodução/ Instagram
Perfil da cobra naja foi criado no Instagram
Imagem: Reprodução/ Instagram

A solteirice da Naja não será exatamente um problema para ela. Boa parte das espécies de serpentes busca parceiros apenas para o acasalamento. Depois disso, vai cada um para seu lado. Após a cópula, elas botam ovos, como a Naja, ou dão à luz pequenas cobrinhas, como os mamíferos.

Acidentes acontecem

Giuseppe já sofreu quatro acidentes no manejo com cobras. Em um episódio há 35 anos, uma jararaca o enviou para o hospital em um estado "muito cruel", como recorda-se. Para piorar, ele mesmo era alérgico ao soro. Após a internação, ele entendeu que é preciso entender e respeitar a complexidade de cada uma delas.

"Nós, para elas, somos um monstro muito feio, que pode causar mal. Por isso, tenho aquele fascínio que os homens têm em entender a natureza. Se eu não fosse biólogo, talvez fosse astrônomo. Por que me encanta o céu, me encanta o ar, as estrelas. Como estudo cobras, quero entendê-las cada vez mais e com maior respeito e fascínio", diz. Em casa, ele não mantém nenhuma delas. E nem pretende.

A incompreensão completa sobre a composição dos venenos continua a intrigar o biólogo. Em 2018, por exemplo, pesquisadores financiados pela Fapesp ainda estudavam os efeitos do veneno da naja no sistema pulmonar de seres humanos. Outro exemplo de poder é de como o veneno deu origem ao captopril, medicamento elaborado a partir dos anos 70 para reduzir a pressão arterial. A composição usa uma molécula do veneno de jararaca.

Os estudos com as cobras e seus venenos começaram muito antes. No fim dos anos 1880, o médico brasileiro Vital Brazil concluiu que era impossível criar um "soro universal" para combater o veneno de todas as cobras e inaugurou uma linha de pesquisa de renome internacional até hoje. Graças a seus estudos com plantas e cavalos, fazendeiros no interior de São Paulo tiveram mais chance de sobreviver às picadas.

Em 1901, Vital tornou-se o primeiro diretor do Instituto Butantan. Hoje, o nome do biólogo também está no Hospital Vital Brazil, do Instituto Butantan, especializado no atendimento em acidentes com animais peçonhentos, e na avenida que dá na porta da estação Butantã do Metrô.

Caso algum pesquisador tenha interesse, a Naja que sobreviveu ao tráfico, ao manejo descuidado, às possíveis turbulências de um avião, à quarentena e aos memes na internet, poderá nos ajudar a desenvolver recursos para viver melhor. Para todos os brasileiros, poderá nos sensibilizar em respeitar e a admirar infinitude da natureza. "Se o conhecimento sobre as serpentes coubesse em um metro, me sinto feliz se já aprendi 10 centímetros", conclui o pesquisador.