Filha de Bitita

Filha da escritora Carolina Maria de Jesus, Vera Eunice realiza sonho da mãe: descobrir as origens da família

Beatriz Mazzei Colaboração para o UOL, em São Paulo (SP) Foto: Daniela Toviansky/UOL | Arte: Deborah Faleiros/UOL

"Se tivesse esse negócio de teste de ancestralidade na época da minha mãe, ela seria a primeira a fazer. Minha mãe tinha uma imensa curiosidade em relação às suas origens", conta dona Vera Eunice de Jesus, 70, professora e filha de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), escritora, compositora e poetisa brasileira, que tem seis livros publicados, além de músicas e mais de 20 obras inéditas guardadas.

Famosa mundialmente, a escritora de "Quarto de Despejo: O Diário de uma Favelada", best-seller traduzido para 13 línguas e considerado um dos livros fundamentais para se entender o Brasil, viveu a maior parte da vida em São Paulo, nos bairros do Canindé, Santana e Parelheiros.

Entre a fama de uma das escritoras mais vendidas do Brasil e a constante ameaça de fome em um mercado editorial instável, a poeta encontrou sua voz na escrita ao ecoar a realidade da favela e denunciar as malezas da desigualdade.

A convite do UOL, Vera Eunice topou realizar o sonho da mãe ao fazer um teste de genética para descobrir de quais países vieram seus antepassados. Com os irmãos José Carlos de Jesus e João José de Jesus já falecidos, Vera, a filha caçula, é hoje a única que poderia embarcar nessa aventura rumo às origens da família.

Os resultados dão contorno para a vida de Carolina Maria de Jesus e confirmações para Vera Eunice, sobretudo na origem paterna, até o momento duvidosa.

Foto: Daniela Toviansky/UOL, Instituto Moreira Sales, Arquivo Pessoal | Arte: Deborah Faleiros/UOL Foto: Daniela Toviansky/UOL, Instituto Moreira Sales, Arquivo Pessoal | Arte: Deborah Faleiros/UOL

54% de África

Nascida em 1953 na favela do Canindé, Vera Eunice teve uma infância marcada pela fome e falta de recursos. A escrita de sua mãe no livro "Quarto de Despejo" dá o tom para como foram seus primeiros anos de vida:

15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.

Apesar da dura realidade da favela, as memórias doces ficam por conta da leitura e da música. Vera diz que sua mãe lia histórias todos os dias e também era comum que seus irmãos tocassem violão, enquanto todos cantavam. Outra lembrança de menina é ver a mãe dançando e balançando as saias.

"Ela dançava e dizia: 'isso é música africana'. E de fato era. Uma música que eu não sei dizer qual era, mas era da África".

Em uma conversa antes da realização do teste, Vera relata que Carolina dizia que sua família deveria ter origem na Angola porque ela era uma mulher retinta (de pele escura), alta e magra, assim como as angolanas.

A hipótese de Carolina se confirmou: 54% de seu material genético vem do continente africano, com predominância de 35% na região oeste, que abrange os atuais países de Angola, Camarões, Gabão e República do Congo.

"Minha mãe ficaria muito feliz de saber disso. Ela gostava da cultura angolana e principalmente da música. Vivia dizendo que era uma preta 'cambinda'".

Cambindas ou cabindas é como são conhecidos os habitantes de Cabinda, território pertencente à República de Angola. Até o século XIX, a região correspondia a um dos principais entrepostos comerciais portugueses de pessoas escravizadas, por conta disso, o termo também já foi usado como sinônimo de "escravo".

Se auto denominar como "Cambinda" mostra o quanto Carolina, mesmo sem estudo formal, já tinha noção da história da África e dos afro-brasileiros. Sua facilidade em assimilar conceitos também marcou a infância de Vera Eunice. Ela conta que se lembra da mãe usando palavras difíceis cotidianamente.

"Quando eu e meus irmãos estávamos com fome e minha mãe não tinha alimento em casa, ela gritava: 'esses famélicos!'. Até pra xingar ela usava palavras rebuscadas".

Foto: Jose Nascimento/Acervo Ultima Hora/Folha Imagem, Acervo UH /Folhapress | Arte: Deborah Faleiros/UOL Foto: Jose Nascimento/Acervo Ultima Hora/Folha Imagem, Acervo UH /Folhapress | Arte: Deborah Faleiros/UOL

Preta como ocre

Para Vera Eunice, a escrita de Carolina veio por influência familiar. Sua mãe era dona Maria Carolina de Jesus, conhecida como Cota, uma trabalhadora doméstica descendente de ex-escravizados do garimpo do ouro.

Com ela, Carolina andava horas para chegar em um poço para buscar água todos os dias. Durante o trajeto, perguntava sobre seu desconhecido pai, até conhecê-lo brevemente um dia em uma praça.

O pai era João Cândido, um repentista natural de Araxá (MG), que dominava as palavras em seus versos e rimas, mas não foi ativo na vida de Carolina. A figura paterna ficou por conta do avô de Carolina, seu Benedito da Silva.

"O pai foi repentista e o avô foi o homem mais inteligente que apareceu em Sacramento. Na época, os negros não sabiam ler, então acontecia uma leitura coletiva do jornal na praça. Meu bisavô levava a minha mãe para ouvir a leitura do jornal todos os dias", conta Vera.

Benedito também deu pistas da origem africana da família de Vera Eunice. Ele falava palavras em Changana, uma língua do grupo Bantu, falada na África do Sul, em Moçambique, na Suazilândia e no Zimbabwe. É um dos três dialetos mais falados em Moçambique e o mais comum na região de Maputo.

Uma das palavras em Changana empregadas por Seu Benedito foi "Bitita", o apelido dado à Carolina, que significa "preta como ocre". "Bitita" também dá nome à obra póstuma "Diário de Bitita", que documenta suas memórias.

O teste de genética de Vera também apontou ancestralidade na região da África Oriental, que abrange Moçambique. No território deste país, mais de 300 mil habitantes foram retirados e enviados principalmente à região Sudeste do Brasil.

Foto: Daniela Toviansky/UOL e Arquivo Pessoal | Arte: Deborah Faleiros/UOL Foto: Daniela Toviansky/UOL e Arquivo Pessoal | Arte: Deborah Faleiros/UOL

Identidade entre mundos

Entre idas e vindas, Carolina muda-se definitivamente para São Paulo nos anos 1930, após episódios conturbados de sua vida envolvendo trabalho análogo à escravidão em uma fazenda em Minas Gerais.

Na capital paulista, às margens do Rio Tietê, na favela do Canindé, nascem seus filhos. Carolina diz em seu próprio diário que não tem interesse em se casar e faz críticas aos homens da sua vizinhança pelo comportamento abusivo e excesso de bebida alcoólica. Preferindo viver só, os filhos são frutos de relações com homens estrangeiros.

No caso de Vera, a forte evidência era que seu pai fosse um homem espanhol e o teste confirmou a hipótese: 40% de seu DNA apontou para a Europa, com ênfase na Ibéria, região relativa à Espanha.

"Cada um é filho de um homem. Nem eu nem os meus irmãos conhecemos os nossos pais. Ela me dizia 'se um dia você quiser saber, você vai atrás'. Eu nunca quis, mas tinha curiosidade em saber se era de fato o espanhol porque as pessoas falavam tanto da minha mãe, que teve até fofoca de que o meu pai poderia ser o Audálio Dantas. Agora posso dizer com toda certeza que não".

A mistura com a Europa fez Vera e os irmãos terem a pele mais clara do que a mãe. O que segundo ela, a livrou de episódios mais explícitos de racismo, dos quais Carolina não conseguiu se esquivar, mesmo durante o auge de sua carreira como escritora.

"Minha mãe sofreu. Primeiro, por ser uma mulher solteira com um filho de cada pai em uma época em que mulher que não era casada, era totalmente discriminada. Segundo, por ser preta retinta. Teve uma vez em que nós fomos em um restaurante caríssimo, todos bem vestidos e felizes, e o segurança olhou para minha mãe e disse 'negro aqui não entra'".

Deborah Faleiros/UOL Deborah Faleiros/UOL

Ainda assim, Vera se reconhece na mãe quando olha a boca, os olhos e outros traços. Essa vida entre o preto e o branco; o pobre e o rico, fez parte da história de Vera Eunice, que nasceu na favela, mas cresceu em espaços repleto de pessoas famosas por conta do sucesso estrondoso de Carolina nos anos 60 com "Quarto de Despejo", que vendeu mais de cem mil exemplares e desbancou nomes consagrados da literatura, como o escritor baiano Jorge Amado.

A década foi marcada por uma transformação na vida da família que se mudou da favela para uma casa no bairro de Santana e passou a conviver com eventos e viagens para o Uruguai, Argentina e Chile, onde Carolina conheceu o escritor Pablo Neruda. No auge do sucesso da mãe, a menina Vera conviveu com figuras como o jogador Pelé, a escritora Clarice Lispector e diversos presidenciáveis, como João Goulart e Jânio Quadros.

Com sucesso meteórico, a fama de Carolina não durou muito tempo. Em menos de 10 anos, o best-seller saiu do espaço de destaque das livrarias e a escritora não conseguiu tanto sucesso com um novo livro.

"Foi uma vida de altos e baixos. Quando fomos para Parelheiros [nos anos 1970], meus irmãos ficaram chateados. Eles questionavam: 'como assim passar fome depois do auge?'. Passar fome com três adolescentes com consciência das coisas é difícil. Essa fome era diferente da que vivemos na favela. Tinha arroz, mas não tinha feijão. Tinha café, mas não tinha açúcar. Nunca estava completo, mas a barriga não doía", relembra Vera.

Foi no sítio em Parelheiros que o mundo se despediu de Carolina. A escritora faleceu no ano de 1977, vitimada por uma crise de insuficiência respiratória, devido à asma. Para a família, ficou a missão de manter seu legado.

Foto: Correio da Manhã / Arquivo Nacional | Arte: Deborah Faleiros/UOL Foto: Correio da Manhã / Arquivo Nacional | Arte: Deborah Faleiros/UOL

O futuro

Carolina, que não teve estudo formal, deu vida a uma menina que, hoje aos 70 anos, não pensa em sair da sala de aula. Virou professora de língua portuguesa. Na escola onde trabalha, perto de sua casa na Vila Rubi, extremo Sul de São Paulo, Vera também aproveita o contato com os mais novos para ensinar sobre ancestralidade negra.

"Alguns dos meus pequenos ainda não gostam do próprio cabelo, então existe um trabalho para falar do cabelo, da cor da pele... Inclusive com os pais também".

É na casa de uma das filhas (ao todo são 5 filhos) que Vera Eunice recebe a equipe do UOL para tomar um café e conversar sobre o teste de genética.

"A Conceição Evaristo fez esse teste e disse que foi maravilhoso". Além de amigas, Vera e a escritora Conceição Evaristo dividem a nobre missão de compor um conselho editorial para zelar pelas obras escritas por Carolina Maria de Jesus por meio do projeto "Cadernos de Carolina", que reúne obras da escritora buscando a integridade dos manuscritos originais, sem editar ou corrigir a maneira como Carolina escrevia.

A minha mãe não escrevia errado, ela tinha dificuldades e esses traços fazem parte de sua linguagem. Ao falecer, ela deixou 27 obras e nós, as conselheiras de suas obras, optamos por deixar Carolina do jeito que ela escreveu. Uma vez a mãe do Criolo, Maria Vilani, me falou: 'quando a gente está escrevendo, não interessa o encontro vocálico, interessa o sentimento'. Minha mãe foi sentimento.

Foto: Instituto Moreira Sales, Arquivo Pessoal | Arte: Deborah Faleiros/UOL Foto: Instituto Moreira Sales, Arquivo Pessoal | Arte: Deborah Faleiros/UOL

Livros para o túmulo

Como um elo entre o passado e o futuro, Vera divide sua rotina entre o magistério, a família que fez e criou e a cuidar da memória da mãe.

Para além da perpetuação de suas obras, ela também arruma tempo para zelar pelo túmulo da mãe e honrar sua vontade: em vez de flores, livros. As mais diversas obras enfeitam o local de descanso de uma das maiores escritoras brasileiras.

"Minha mãe me dizia que para se empoderar, a mulher precisa estudar. Tenho certeza que se ela pudesse aconselhar a nova geração, ela diria o que me disse: 'estude, leia, seja dona da sua própria cabeça'. Carolina foi favelada, mulher preta, mãe solo e escritora. Para mim, a palavra que a define é 'ousadia'. Minha mãe foi ousada".

Topo