Construtora de futuros

Ítala Herta acolhe projetos para que mulheres, jovens e negros de Salvador tenham trajetórias potentes

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo Raul Spinassé/UOL

O racismo é uma máquina de destruir a juventude. É um dano irreparável ao país. Hoje, eu ajudo pessoas de bairros populares, principalmente jovens, mulheres e negros, a encontrarem e construírem seus sonhos, tocarem seus projetos, transformando a vulnerabilidade em potência. Esse trabalho é uma forma de buscar o bem comum.

Percebi que tinha que proteger essas potencialidades, esses futuros, esses negócios, porque eu também quase tive minha vida e minha carreira comprometidas por conta do racismo e da violência.

Tenho o foco nas mulheres empreendedoras, principalmente as negras, porque elas precisam sair das narrativas da precariedade e serem valorizadas. Isso é uma coisa que pode regenerar a economia deste país. E ainda ajudar a promover uma maior equidade de gênero.

Aos 33 anos, Ítala Herta até parece que se multiplicou. De ativista negra se transfigurou em produtora, empreendedora social, cofundadora da Vale do Dendê (primeira aceleradora do Nordeste de negócios com foco em diversidade), cocriadora do portal e festival Ocupação Afro.Futurista, cabeça na iniciativa Diver.SSA (iniciativa para fomentar o empreendedorismo feminino de impacto social no Norte-Nordeste). E trabalhou com economia criativa, sustentabilidade e responsabilidade social em instituições públicas e privadas. Isso entre dezenas colaborações, consultorias, mentorias, parcerias, palestras, cursos.

Mas a primeira vez que seu nome saiu na imprensa foi nas páginas policiais. Em 2008, aos 19 anos, ela voltava do centro à noite com dois amigos para o bairro em que morava, Boca do Rio, quando o taxista que os levava "confundiu" os passageiros com assaltantes, acionando uma viatura por perto. O que se seguiu foi uma abordagem truculenta que só não acabou em morte porque o carro do tio e a tia de Ítala, que também voltavam do centro, passava por lá na hora da ação. Como tantos outros processos de violência policial, o caso foi encerrado sem punição aos agressores, mesmo sendo todos denunciados por racismo.

Hoje, ela frequenta as seções de economia e negócios dos jornais. O cotidiano pouco inclusivo, no entanto, também passeia pelos corredores do empreendedorismo. Encontrar e distribuir força na adversidade fez Ítala olhar com atenção para as empreendedoras, em especial as negras, afinal, 82% da população de Salvador é formada por pretos e pardos. "Muitas delas empreendem por necessidade e enfrentam dificuldade nos negócios por questões de dupla jornada, acúmulo de horas em tarefas domésticas, falta de crédito. Precisamos trocar essa narrativa do risco por uma narrativa da confiança. No meu trabalho, procuro transformar a vulnerabilidade em liderança", aponta.

Raul Spinassé/UOL Raul Spinassé/UOL
Raul Spinassé/UOL

Sua motivação e aprendizagem com o empreendedorismo vieram de família. Quando Ítala tinha oito anos, o pai saiu do emprego e montou um restaurante na frente da casa em que moravam. Uma tia cozinhava, a mãe ficava no atendimento e gestão, e o pai era responsável pelos trâmites e finanças. Era um ambiente de apoio mútuo, todas as três filhas se revezavam em várias funções. "Quem estudava de tarde ajudava a organizar o salão e sair para comprar ingrediente que faltava. Quem ia para a escola de manhã apoiava nos atendimentos da tarde, saia para arrumar troco e ajudava nas tarefas de limpeza. Era um ambiente de muita instabilidade financeira, como muitos pequenos empreendedores no Brasil. Preparou muito a gente para a vida."

Formada em Relações Públicas, Ítala trabalhou muito em produção de eventos culturais e, aos poucos, foi se transformando em uma consultora de projetos envolvendo mulheres, tecnologia e empreendedorismo nas periferias da área metropolitana de Salvador. Mas não só lá: como associada de uma organização liderada por mulheres na zona rural do Rio de Janeiro, a Silo (Arte e Latitude Rural), colaborou promovendo o protagonismo feminino, autonomia e práticas colaborativas por meio do evento EncontrADA entre 2015 e 2019.

Três anos atrás, ajudou a fundar a Vale do Dendê, uma aceleradora de micronegócios que aproxima a população em geral de um ambiente de inovação. Como percebeu que mais 80% dos frequentadores de lá eram mulheres, e elas tinham mais dificuldade por se dividir entre as tarefas do lar, da família e os negócios, Ítala viu aí a necessidade de uma necessidade de uma iniciativa específica para elas. Surgiu a Diver.SSA.

Se conhecer não é um fetiche. É um processo doloroso, até. Mas é importante descobrir sua identidade sem cair em padrões, sem achar que existe uma receita de bolo.

Ítala Herta

Raul Spinassé/UOL

Os três pilares que ela apresenta para quem está ou quer entrar em um negócio próprio são: autoconhecimento, autoconfiança e autogestão. "Ninguém empodera ninguém: cada um se autoempodera. Quando um mulher se autorreconhece, aproveita mais as oportunidades."

A maior dificuldade para conseguir empréstimo persegue as mulheres no Brasil, e mais especificamente as negras - estas últimas encontram no empreendedorismo a única saída porque dificilmente não acham bons empregos no mercado.

"É uma construção perversa que mistura machismo, racismo e outros preconceitos. Os gerentes de banco, os investidores, são homens brancos. São esses perfis que controlam as principais tomadas de decisões para maior circulação de dinheiro no nosso país. E isso nos mantém distantes do radar dos investimentos. Nós somos associadas sempre a uma narrativa de precariedade, sem enxergar a abundância que somos. Além disso, não temos tempo integral para nossa ideia ou negócio, enquanto outros perfis de empreendedores mais assistidos se revezam entre uma transição de carreira e sabático para se inspirar, ou até já tem dinheiro reservado, investidor interessado para tirar a sua ideia do papel", opina.

Descobrir vocações, desenvolver ideias, buscar novas soluções e ajustar negócios em andamento são alguns auxílios que Ítala chama de acolhimento estratégico, metodologia criada para acompanhar as iniciativas, aproveitando seus 10 anos de experiência.

É um trabalho voltado para as mulheres. Despertar o talento dá autoconfiança. E a autogestão dá consistência ao negócio.

Ítala Herta

Ítala gosta de desconstruir narrativas pré-moldadas. Uma delas é a visão "sudestina" de tratar o Nordeste como uma coisa só. "É o fetiche da regionalização. Os Estados do Nordeste são muito diferentes entre si. E a Bahia acaba ficando muito invisibilizada, só vista como um lugar de festa, de entretenimento. Salvador é uma capital criativa, com projetos incríveis, de vanguarda e um frescor na produção nos últimos anos. Mas os investimentos acabam se concentrando no Sudeste. Faz parte da minha missão de vida mostrar a criatividade do Nordeste, um lugar onde, com pouco investimento, muito se faz em termos de inovação social e tecnológica".

Outra narrativa recorrente que Ítala detecta é a da superação. "Há uma cilada de raciocínio no Brasil sobre o perfil do empreendedor lutador. Nossas histórias de dores e sofrimento não podem ser naturalizadas, ou servir de palco de autopromoção para quem deseja apoiar ou investir. Tem muita gente que vende o almoço para comprar a janta. E, antes de falar de empreendedorismo ou histórias de sucesso como uma questão de opção para todos, precisamos dar conta dos contextos que essas pessoas se encontram ou cresceram. Só com um ecossistema inclusivo e acolhedor, mulheres, negros e jovens têm chance de manter seus negócios. De outra maneira, fica só o discurso vazio ancorado pelo mito da meritocracia."

A fragilidade da mulher é outra história que Ítala tenta derrubar. "Há uma visão muito estereotipada da mulher. Há muitos interesses em jogo em congelar as mulheres nesse papel", argumenta. "Por sua sobrecarga de trabalho, doméstico e profissional, a mulher acaba sendo condicionada a buscar soluções para tudo e todos. Ela foi obrigada a desenvolver essa habilidade de tomada de decisão muito mais rápido que os homens. Se essa dedicação for redirecionada aos seus talentos e bem acompanhada pode se tornar uma vantagem que poucos enxergam", completa.

Para Ítala, as mulheres mantêm por meio da economia do cuidado esses sistema funcionando, e têm o potencial de regenerar a economia do país pensando no bem comum. O empreendedorismo feminino pode também ajudar a promover a equidade de gênero. Essa é mais uma luta de Ítala.

Raul Spinassé/UOL Raul Spinassé/UOL

+ Especiais

Lucas da Rocha Lima/Arte UOL

Ubuntu

Mulheres negras criam rede de apoio baseada em yoga ancestral

Ler mais

Ideias

Mario Sergio Cortella: "Ser antirracista é questão de decência"

Ler mais

Feira Preta

Adriana Barbosa fala sobre empreendedorismo, criatividade e diversidade

Ler mais
Topo