Na onda de Sobral

Qual o segredo da cidade cearense com o melhor ensino fundamental? Veja estados que replicaram o modelo

Keyty Medeiros de Ecoa

Surfando com notas altas

Localizada no Ceará, Sobral tem 208 mil habitantes e ganhou projeção nacional pelo rápido crescimento no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), indicador de desempenho da educação brasileira.

Em dez anos, a nota da cidade nos anos iniciais do ensino fundamental passou de 4,9 para 9,1, a mais alta de todo o Brasil. E o município tem ainda o melhor resultado nos anos finais do ensino fundamental, com nota 7,2, segundo o Ideb 2017. A cidade se prepara agora para as avaliações de 2019.

Mas qual o segredo de Sobral? E será que a nota é sinal de qualidade da educação? A reportagem de Ecoa acompanhou uma estudante de escola municipal, conversou com responsáveis pela gestão e consultou dados e especialistas para entender como esse modelo educacional tem sido adotado por outros estados, em etapas de ensino distintas, com avanços no Ideb.

"É divertido ficar na escola"

Meio-dia e meia. Juliane Rodrigues da Silva, 10, já almoçou e está pronta para voltar à escola. Depois de ter passado a manhã tendo aulas de português, matemática e ciências na turma do 5º ano do ensino fundamental, está animada para as atividades complementares do "cursinho", no período da tarde: produção textual, exercícios de matemática e revisão para provas.

"Não gosto de faltar. É divertido ficar lá estudando porque fazemos exercícios mais legais à tarde", conta a menina, que já ganhou três medalhas da categoria ouro e uma medalha da categoria diamante pelo desempenho exemplar nas avaliações da escola.

Juliane foi almoçar em casa porque mora perto, mas poderia ter feito a refeição na escola, já que estuda em período integral e tem direito a café da manhã, almoço e café da tarde. Das 7h30 às 11h30, aprende a grade curricular tradicional. E, das 13h às 17h, tem aulas complementares, que permitem o contato com novos professores e preparam para as provas que medem o desempenho escolar.

A jovem estuda no Caic (Centro de Apoio à Criança) Raimundo Pimentel Gomes de Educação Infantil e Ensino Fundamental, uma escola municipal de Sobral (CE), cidade que lidera no ensino fundamental o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica no Brasil).

O Ideb é um indicador de desempenho da educação brasileira medido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação (MEC). O índice é definido a partir do desempenho em português e matemática de alunos do 5º ano e do 9º ano do ensino fundamental e do último ano do ensino médio. A taxa de aprovação, obtida pelo Censo Escolar, também é utilizada no cálculo da nota do Ideb, que vai de zero a dez.

Sobral tem nota 9,1

Na última edição, em 2017, o Ideb de Sobral nos anos iniciais do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano) foi de 9,1, nota bem acima da média nacional, que é de 5,8 nessa faixa escolar. A cidade, que fica a 230 km de Fortaleza, alcançou também a maior nota do Brasil nos anos finais do ensino fundamental (do 6º ao 9º ano), com 7,2. A média nacional é 4,7.

Em 2019, Sobral se prepara para uma nova rodada de avaliações, que acontecem a cada dois anos em todo o Brasil. As provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) serão aplicadas de 14 a 25 de outubro pelo Inep, e o desempenho dos estudantes terá impacto no Ideb.

A turma de Juliane se esforça para manter ou melhorar a nota que a escola teve em 2017, que foi de 9,3. Por isso, desde o início do ano, os alunos do 5º ano têm aulas em período integral, com reforço em português e matemática. "A gente sabe que o Ideb é importante e vai fazer este ano, então está estudando antes", conta Juliane.

Evolução do Ideb em Sobral nos anos iniciais do ensino fundamental

Efeito onda

Os resultados de Sobral chamaram a atenção do próprio Ceará e de outros estados brasileiros, que passaram a se inspirar no sistema educacional fortemente estruturado na alfabetização na idade certa, na valorização do profissional da educação infantil, na gestão eficiente da escola e na formação continuada dos professores, dentro da carga horária de trabalho.

"Sobral não é mais uma ilha de excelência em educação no Brasil. A gente tem uma série de municípios que estão avançando com esse modelo de gestão pedagógica, muito focado no trabalho em sala de aula, com gestão de eficiência para gerar aprendizado entre os alunos", afirma Gabriel Corrêa, gerente de políticas educacionais da instituição não governamental Todos Pela Educação (TPE).

Não só outros municípios estão avançando com esse modelo - das dez cidades com maior Ideb nos anos iniciais do ensino fundamental, seis estão no Ceará -, mas também outros estados, e em etapas de ensino distintas. Goiás, Espírito Santo e Pernambuco são estados que, segundo Gabriel Corrêa, se inspiraram para o ensino médio no modelo de gestão escolar de Sobral, adotado também pelo governo estadual do Ceará, e que têm melhorado no Ideb.

No caso do ensino médio, embora a rede pública brasileira ainda apresente notas consideradas baixas, esses estados se destacaram por avanços no desempenho. Goiás, por exemplo, obteve, em 2017, o melhor resultado no ranking nacional de ensino público no ensino médio, com nota 4,3, seguido por Espírito Santo, com 4,1. Pernambuco, que era o primeiro no ranking anterior, ao lado de São Paulo, caiu para a 3ª posição, mas teve crescimento na própria nota, ficando com 4,0. Ceará também cresceu em relação a 2015 e ficou em 4º lugar, mesma posição que o estado de São Paulo, que teve queda na nota, ambos com 3,8.

Os quatro primeiros colocados das redes estaduais no Ideb ensino médio 2017

Goiás, que saltou da 16ª posição em 2011 para a liderança da rede pública em 2017, conta com a figura do tutor, responsável por analisar dados e informações gerenciais da escola em busca de melhores resultados nas avaliações, diagnosticando problemas e propondo soluções. O modelo é adotado também por Espírito Santo.

Já Pernambuco investe no ensino médio integral. "É muito comum alguém criar um projeto bonito em poucas escolas da rede, mas não parar para pensar se isso está articulado a uma estratégia, se pode ser massificado ou não. O que nós buscamos foi uma filosofia. Tomamos a decisão de apostar na Escola de Tempo Integral, mas esse era apenas um dos eixos que faziam parte de uma grande estratégia para todo o estado. O avanço, portanto, não foi resultado de um único projeto", explica o secretário estadual de educação de Pernambuco, Fred Amancio.

Apesar das particularidades, os estados que mais cresceram no Ideb ensino médio têm em comum alguns pontos-chave com o modelo de gestão do ensino fundamental de Sobral.

O caminho, no entanto, ainda é árduo. "Eu nem chamaria de bons resultados no ensino médio, porque, hoje em dia, quando a gente pega o ranking do Ideb, os estados que se destacam no ensino médio são estados que estão com notas em 3,8 ou perto de 4,0, num ranking de 0 a 10. Então, por mais que sejam estados com destaque nacional como avanço e melhoria, ainda não são estados excelentes", explica o gestor da Todos pela Educação, Gabriel Corrêa.

No Brasil, a gestão da educação básica, isto é, da alfabetização até o final do ensino médio, é dividida entre os governos municipais e estaduais, sendo que o município é responsável pelo ensino fundamental e o estado, pelo ensino médio. No caso de Sobral, o Ideb do ensino médio na rede pública é de 4,3, maior que o do estado, que é de 3,8, porém ainda longe das notas que a cidade alcançou no ensino fundamental. Uma série de políticas públicas municipais, algumas posteriormente replicadas ao estado, foi determinante para a educação fundamental alcançar o topo do Ideb.

Qual o segredo de Sobral?

Na avaliação do secretário de educação municipal, Francisco Herbert Lima Vasconcelos, o ponto principal do modelo de Sobral é a valorização da alfabetização na idade certa. "Nós avaliamos que a alfabetização se constrói ainda no último ciclo da educação infantil, com materiais didáticos estruturados, utilizando o que há de bom em diferentes métodos de alfabetização e, a partir da própria estrutura da rede municipal de Sobral, essa prática se consolida. Tudo isso acaba fortalecendo a melhoria da aprendizagem e se materializa em bons resultados, como as notas do Ideb", comenta.

O projeto foi implantado em 1997, quando a rede municipal, que atualmente conta com cerca de 35 mil estudantes, iniciou uma série de transformações. Na mesma época, pesquisas realizadas pelo Instituto Ayrton Senna apontavam que 40% das crianças de oito anos de Sobral não sabiam ler ao final do segundo ano do ensino fundamental. A instituição apoiou uma reforma profunda no sistema educacional da cidade, com duas metas objetivas: alfabetizar as crianças até os sete anos de idade e corrigir o fluxo escolar de alunos que cursavam séries seguintes sem dominar leitura e escrita.

"O primeiro passo foi a produção de material específico de alfabetização entregue a cada criança individualmente, estimulando, assim, a responsabilidade. O segundo passo foi a promoção de formação continuada para os professores, envolvendo-os como agentes fundamentais desse processo", conta o professor João Batista Araújo e Oliveira, que era consultor do Instituto em 1997 e fez a coordenação técnica do projeto.

Segundo o secretário Francisco Herbert Lima Vasconcelos, além de elaborar materiais pedagógicos adequados, a cidade passou a adotar um conjunto de políticas públicas a partir de 1997, ancoradas em três eixos centrais.

Três eixos das políticas educacionais de Sobral

Fortalecimento da gestão escolar

Diretores e coordenadores são selecionados por meio de concurso público, com análise de currículo e formação, e não por indicação política

Qualificação do trabalho nas aulas

Professores têm uma escola de formação continuada para auxiliar no planejamento de aulas e no desenvolvimento de materiais didáticos

Valorização dos profissionais

Lei municipal garante o pagamento de bonificação e gratificação diretamente no contracheque dos professores, atrelado a metas de aprendizagem

Resultados

Em dez anos, os resultados começaram a aparecer: em 2007, a avaliação de Sobral no Ideb para os anos iniciais do ensino fundamental foi de 4,9, superando a meta da cidade, estipulada em 4,0. Desde então, o crescimento tem continuado. Em 2009, o município tinha o 15º melhor resultado do país, com nota 6,6; em 2011, subiu para a 5ª posição, com 7,3, e, em 2017, atingiu o 1º lugar no ranking nacional, com 9,1.

Os ótimos resultados de Sobral chegaram inclusive a levantar suspeitas. Em setembro de 2018, o jornalista Wellington Macedo de Souza passou a publicar uma série de vídeos no YouTube com supostas denúncias de fraude em avaliações que são usadas para calcular o Ideb. No esquema haveria troca de estudantes na hora da prova e cola passada por professores, com o aval da direção das escolas da cidade, a fim de elevar o desempenho.

O secretário de educação de Sobral, Francisco Herbert Lima Vasconcelos, diz que as acusações são falsas e tiveram intenções eleitoreiras. Em novembro de 2018, ele abriu um processo criminal contra o jornalista por calúnia, injúria e difamação. Em 21 de janeiro deste ano, a questão foi direcionada ao Ministério Público do Ceará e, desde então, corre em segredo de justiça.

A coordenadora pedagógica Fabiana Torquarto Braga, da escola Raimundo Pimentel Gomes, onde Juliane estuda, reforça que os bons resultados do projeto de educação de qualidade em Sobral são consequência de esforços conjuntos de toda a comunidade escolar. "O foco da nossa educação está na criança e na sala de aula, por isso temos muitos projetos para atrair os estudantes, mantemos conversas com os pais pelos grupos de WhatsApp", explica Fabiana.

Nós observamos as interações dos alunos com os outros colegas, com os outros professores, observamos o desempenho diário das crianças para realmente acompanhar o desenvolvimento social e cognitivo delas."

Fabiana Torquarto Braga, coordenadora pedagógica da escola Raimundo Pimentel Gomes

O caso de Sobral é emblemático para o caso brasileiro porque ele reforça que, com uma boa gestão da área educacional, é possível, sim, oferecer uma educação de qualidade para todos os alunos, mesmo em contextos mais desafiadores socioeconomicamente falando."

Gabriel Correa, gerente de políticas educacionais da instituição não governamental Todos Pela Educação (TPE)

Ideb é sinal de qualidade?

Uma questão que deve ser analisada, na opinião do pesquisador Fernando Cássio, autor do livro Educação contra a Barbárie e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), é que uma educação de qualidade não pode ser medida somente por indicadores de desempenho. Para ele, os sistemas de avaliação em massa não deveriam ser vistos como medida de qualidade.

Segundo o pesquisador, para avaliar a qualidade do ensino e do aprendizado é preciso, antes, definir o mínimo existencial para uma escola funcionar com qualidade, isto é, definir quanto custa uma boa infraestrutura. É necessário saber se a escola tem água, esgoto, internet, merenda, quadra coberta, número de salas adequadas, laboratório de ciências e, também, se os professores recebem o Piso Nacional. No caso dos estados citados como destaque no Ideb, Ceará e Goiás praticam o Piso Nacional do Magistério, calculado em R$ 2.557,74. Já Pernambuco e Espírito Santo pagam salários menores.

"Ninguém vai olhar para uma escola que está muito abaixo no ranking do Ideb e perceber que está abaixo porque não tem professor, não tem giz, não tem lousa, não tem material didático, além da análise socioeconômica. É por isso que esses resultados de matemática e português não podem ser lidos como transparência, como se eles simplesmente dissessem tudo", afirma Fernando Cássio.

De acordo com Idevaldo da Silva Bodião, professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará e também ex-secretário de Educação de Fortaleza (2005), o papel das avaliações em larga escala é definir o currículo pedagógico de trás para frente com o objetivo de melhorar a performance do colégio nas avaliações.

"A dinâmica da escola - o que inclui o currículo escolar em sua plenitude - fica reduzida a um processo de treinamento para grandes performances. E é isso que acontece em Sobral, com os compilados de questões aplicadas em provas anteriormente. A prática das escolas, sobretudo nos anos em que se fazem estas avaliações, fica focada no treinamento da performance. Isso sem falar na diminuição de currículo nas disciplinas que não são avaliadas pelas provas nestes anos", diz Bodião.

O professor ainda afirma que, apesar disso, existe um sucesso no programa, se forem considerados apenas os resultados nas avaliações. "Isso significa ter um ótimo treinamento para a prova, mas nada disso tem a ver com o artigo 205 da Constituição Federal, que se sustenta na defesa da educação para o desenvolvimento pleno da pessoa humana."

O secretário de educação Francisco Herbert Lima Vasconcelos defende que a excelência na educação de Sobral está amparada em uma gestão eficiente de recursos para a infraestrutura, mas passa também pela formação dos professores. "Em Sobral, temos uma escola de formação de professores, onde eles saem pelo menos uma vez por mês da sala de aula, deixando um professor substituto, e passam por uma formação continuada, mensalmente", comenta.

Para a mãe de Juliane, Maria Roseana de Paula Silva (foto abaixo), costureira de 43 anos, a escola permite que as crianças vislumbrem diversas possibilidades. Ela conta, por exemplo, que a filha quer ser chef de cozinha. "No meu tempo, não tinha nada disso. Hoje é tudo muito bem explicado e também a escola é mais bem cuidada e decorada para atrair as crianças. Tem muita motivação, como medalhas de ouro e diamante para os melhores alunos. Muita coisa mudou para ela. Acho que assim ela já está mais bem preparada para uma seleção de emprego no futuro", acredita Roseana.

Juliane diz que adora a escola: "Eu acho muito legal, divertida, e lá tem ótimos professores também, que ensinam muita coisa pra gente. Eu gosto das explicações dos professores, são muito boas. A gente entende com clareza o que eles explicam", conta a menina, antes de seguir, sorrindo, para mais uma tarde de aulas preparatórias.

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