Topo

Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Artista faz esculturas para celebrar pessoas e cenas das favelas do Brasil

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

03/03/2022 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O amor pela arte, Leandro Araújo pegou emprestado com Seu José Pedro, o pai. "Ele é sanfoneiro. Nos anos 1990, quando ainda não existia muito espaço de entretenimento por aqui, ele já tocava pelas ruas da região", explica. O aqui de Leandro é na Favela Santa Inês, entre Ermelino Matarazzo e São Miguel Paulista, no extremo leste de São Paulo. "Mas eu me encantei mesmo foi pela forma, pela folha em branco. Passei a infância desenhando muito".

Seu José Pedro, o pai do Lelê, ganhou uma escultura em sua homenagem - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Seu José Pedro, o pai do Lelê, ganhou uma escultura em sua homenagem
Imagem: Arquivo pessoal

Quando encontrou a juventude foi a vez de este encantamento ganhar um chão, o Ateliê Azul, projeto criado em 2008 pelo artista Elcio Torres. "Foi lá que eu conheci a cerâmica artesanal e passei a trabalhar de maneira coletiva para produzir arte em painéis, esculturas e expor isso na rua". De aprendiz, Lelê, como é conhecido, pulou rápido a parceiro, sócio de Élcio na criação e produção dos azulejos que colorem as ruas e fachadas das muitas casas que ele viu nascer do zero, do barro do chão. Os pontos, a gente liga olhando para trás.

"Toda a referência que eu tenho é de mutirão de casas. Toda aquela coisa de pedir emprestado xícara de café, um suco. Nos anos 2000 a coisa mudou um pouco. Saíram os barracos e entraram as casas de alvenaria aqui no bairro", relembra, para destacar que não vê nenhum problema em ser identificado com o seu bairro. Pelo contrário, o estereótipo e o julgamento estão na cabeça de quem nem conhece a sua rua.

"Eu sou um favelado assumido, apesar de circular pela cidade quebrando os muros. Eu gosto do lugar onde eu cresci. Claro, a gente não está no paraíso, mas estamos num mundo que transita entre coisas boas e ruins. Para mim tudo é referência".

Ideias misturadas feito o barro

B - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

E foi em meio a essas mudanças físicas, sociais e culturais de seu bairro, que Lelê se inspirou para uma construir uma série que celebra as memórias, os lugares e os personagens das favelas e periferias de São Paulo, e de todo canto: o cachorro deitado na porta do bar, o garoto olhando para o céu esperando chover pipa.

"Meu trabalho é bem figurativo. Não é uma cópia, nem o que eu acho das favelas, mas sim representações das imagens que eu vejo pelo caminho", ele explica. O artista Leandro quer congelar em esculturas as imagens que o morador Lelê viu por aí. "Não importando se são boas ou ruins, sabe", faz questão de pontuar.

Batizada de Histórias da Favela, assim mesmo, um nome papo de reto, como me disse, a série terá várias fases, é o que sonha. A primeira começou agora em janeiro, quer terminar tudo até abril. Tem pouco mais de dois meses de produção pela frente, duas peças já prontas e acabadas, ainda sem nomes: o garoto em cima da laje olhando para o céu, o cachorro descansando numa calçada. Nada é mais favela que isso, brinca.

A - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Essa série não veio do nada. Ela brotou em mim a partir de um alinhamento das várias técnicas que fui acumulando. Ela é resultado de um trabalho que venho fazendo com arte há mais de 10 anos". E só muita observação e olhar atento para fazer brotar possibilidades artísticas como essa, repare bem: "Eu não quero comprar este barro numa loja. Eu quero colhê-lo de onde a gente pisa, do nosso chão. Depois queimá-lo fazendo uma fogueira e dar uma forma", até contar uma história. É isso que você entendeu e suspirou, Leandro constrói suas esculturas com o barro que recolhe do chão das favelas por onde anda.

Tudo começou quando seu amigo Levi chamou atenção para as possibilidades que moravam no chão das favelas. Poético e potente isso. Levi morava perto do Parque da Consciência Negra, em Cidade Tiradentes, e foi por ali que encontrou o primeiro barro com este potencial de ser tratado. Depois que soube disso, foi só Leandro costurar todos os pontos dessa história. Estava tudo ali, na sua frente.

"Nas favelas tem inúmeros barrancos, várzea de rio. Eu coleto este barro, alguns já estão prontos, outros preciso adicionar alguns componentes e ele pode ser transformado em cerâmica", explica. Daí é só deixar que o seu talento faça o resto do trabalho.

A pracinha é uma galeria a céu aberto

Feito muitos talentos das periferias, Leandro equilibra o que o alimenta o coração e as utopias com o que fecha as contas no fim do mês. Hoje em dia, "eu estou trabalhando com montagem de cenário e aderecista de arte, que é a minha área também. Não consigo viver apenas de minha prática artística", conta. Quer, sim, que suas obras tenham um valor financeiro, que passem a ser vendidas, assim ele não ficará longe do seu ateliê, que é sua cabeça e imaginação. Mas não fará isso a qualquer custo, já diz logo: "Não quero perder o foco fazendo outra coisa, minha arte não é somente para vender".

Perguntei então, o que é essa tal de arte, no que Leandro respondeu assim: "É desobedecer. Desobedecer a essa ordem de alguém que estabelece o que é ou não é arte. Arte é o que toca o coração das pessoas. O que eu quero com meu trabalho é isso, tocar mentes e corações. Não importa o que digam sobre o que eu fiz", explica.

C - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Quando tudo terminado, daqui a pouco em abril, ele quer que suas obras ganhem as praças do bairro. É lá que as moradoras e moradores irão se reconhecer em cada um dos trabalhos, imagina. Que elas andem por toda cidade, por todas as cidades quem sabe, mas que o marco zero seja lá, na rua da feirinha de sábado, que ele vai semana sim, semana sempre: "Eu comecei a fazer essa série com o pensamento de já expor isso na favela mesmo, de maneira gratuita, para todo mundo ver. Colocar numa praça pública já é exposição".

A pergunta que não poderia faltar, a inspiração vem de onde? Tem referências nessas obras que você está botando no mundo, a resposta poderia abrir ou fechar este artigo. Escolhi a segunda opção, vontade de deixar a gente pensar depois de ler isso: "Eu não me apeguei em referências artísticas, eu me livrei delas. Eu não estou me importando com o conceito de arte, estou me livrando disso para conseguir fazer algo autêntico". Às vezes é assim: a gente se esvaziando inteiro para encher o mundo de novo.