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Tomas Rosenfeld

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Domingo no supermercado

Entregadores de aplicativo realizam ato em frente ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT), no Rio de Janeiro - João Carlos Gomes/ Myphoto Press/ Estadão Conteúdo
Entregadores de aplicativo realizam ato em frente ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT), no Rio de Janeiro Imagem: João Carlos Gomes/ Myphoto Press/ Estadão Conteúdo

03/08/2021 06h00

Desde que voltei para São Paulo, há algumas semanas, fui todos os domingos ao supermercado. Talvez seja o meu inconsciente, empurrando-me para uma atividade impossível nos meus últimos dois anos. Na Alemanha, onde vivi nos últimos tempos, os mercados não abrem aos domingos - o dia de descanso está assegurado na constituição do país. Ao voltar para cá, fui ocupado por uma sensação mista entre o estranhamento e o conforto.

A cada domingo o estranhamento encolhe um pouco. No primeiro, ainda sob influência do fuso-horário, entrei logo após a abertura das portas. Encontrei um espaço amplo, alimentos perfeitamente organizados e um mar de funcionários. Em um mercado relativamente pequeno, contei mentalmente mais de vinte pessoas entre seguranças, caixas, o pessoal que repunha os itens nas gôndolas e a funcionária que media nossa temperatura com um termômetro sem contato.

Em uma segunda visita, notei que além de outras duas pessoas com cara de sono fazendo compras vestindo a última moda fitness do domingo - tênis de corrida, calça legging e coletinhos de material sintético acolchoados - outras três usavam blusas laranjas com o logo de marcas, não de grifes de luxo, mas de aplicativos de entrega. Eram "personal shoppers", identificados com uma indumentária própria, caminhando apressados entre as gôndolas.

Na terceira semana, em um impulso ligado ao que restava do meu incômodo, tentei usar um dos caixas de autoatendimento. Durante o processo, que eu deveria concluir sozinho - passando os códigos de barras por um leitor óptico e depositando os produtos do outro lado da esteira - recebi o suporte de três funcionários atenciosos que procuraram solucionar minha falta de jeito.

Na Alemanha, mesmo em prédios de alto padrão não há porteiro, não existem empacotadores de compras nos supermercados ou "personal shopper" de aplicativos. Ao voltar para o nosso país, a nossa cidade, uma das coisas que mais me surpreendeu foi a quantidade de - na falta de uma palavra melhor - mimos à disposição de quem possa pagar por eles.

Se nas primeiras semanas a sensação foi avassaladora, como se eu fosse um personagem em uma série sobre um futuro distópico - em que funcionários uniformizados vigiam e servem - nas semanas seguintes o incômodo foi se dissipando. O conforto de receber as compras na porta de casa, sem os inconvenientes associados às saídas, foi me envolvendo como uma coberta espessa nesses dias de inverno.

Lembro-me de ter aprendido, em uma visita a alguma das obras de Lina Bo Bardi em São Paulo - talvez à Casa de Vidro no Morumbi ou ao Sesc Pompéia - que a arquiteta italiana não era fã de sofás. Para o mobiliário, preferia as poltronas e bancos que, ao contrário das peças mais longas e completamente estofadas, não permitem um esparramar absoluto, uma perda total da disciplina e consciência dos membros e músculos.

Esse breve texto é um lembrete, ao menos pessoal, de que o conforto não deveria nos distrair das desigualdades que encobre. Lina nos lembra da importância de nutrir o desconforto, de sentar em um banco duro de madeira e do que perdemos ao nos envolvermos em um paradigma da comodidade.