Rodrigo Ratier

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Opinião

Além das paisagens, da cultura e do Instagram: o prêmio oculto das viagens

Na versão americana da série "The Office", há um episódio em que três colegas de trabalho viajam juntos de Scranton, nos Estados Unidos, para Winnipeg, no Canadá. A viagem é desimportante — visitar um cliente — a um lugar sem atrativos evidentes — antes que eu seja cancelado pelos winnipegianos, é assim que a cidade é apresentada no episódio.

Dois dos colegas, Oscar e Andy, nem sequer saem do hotel. Amarram uma bebedeira que resulta em confusões que não vêm ao caso. O que interessa, aqui, é a conclusão de Andy, ainda na ressaca do dia seguinte. Algo assim: "Trabalho há anos com o Oscar e só vim conhecê-lo nesta viagem".

Os relatos clássicos das grandes viagens se moldam ao arco narrativo da jornada do herói. O protagonista é desafiado a sair de uma situação cômoda com a promessa de uma recompensa. A resposta quase instintiva é uma recusa ao chamado.

A zona de conforto é... confortável, para quê se arriscar? O desejo, porém, acaba falando mais alto e ele, ou ela, parte rumo ao desconhecido. A terra prometida, o eldorado, um ambiente de paz. No exemplo dos grandes aventureiros, a expectativa de recompensa é justificativa suficiente para se pôr em movimento.

No nosso caso, é verdade que lindas paisagens, culturas exóticas, gastronomia imperdível — para depois postar tudo no Instagram, como exemplifica a espantosa profusão de telas móveis no Ano Novo da Champs-Élysées, em Paris — também são boas razões para tirar o traseiro da poltrona e passar pelos inevitáveis perrengues implicados no ato de sair de casa. Pois, exceto para os super-ricos e seres iluminados com a terapia em dia, viajar nunca é fácil.

Dependendo do destino, a série de infortúnios pode envolver engarrafamentos mastodônticos, filas a perder de vista, falta d'água ou inundação, perda de documentos, roubo de celular, voos cancelados, ansiedade e crises de pânico, golpes em táxis, hotéis e restaurantes, insolações, viroses, doenças antigas ou novas transmitidas por insetos, vermes e outras formas de vida menos populares.

Sim: também na era moderna não faltam as provações para desafiar, em suas epopeias de férias, os heróis contemporâneos e seus pacotes parcelados em 12 vezes pela CVC.

Nas jornadas clássicas, quando tudo dá certo, o herói retorna com sua recompensa, mas seu grande prêmio costuma ser de outra ordem. Ele volta transformado, mais sábio, compreendendo algo sobre si e sobre os outros que antes não conseguia compreender.

É dessa ordem a retribuição expressa por Andy em The Office. Atira-se no que vê, acerta-se o que não se vê. E quase sempre costuma compensar.

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Em 1987, meus pais promoveram uma road trip que só seria possível na virtual inexistência de normas de segurança dos anos 1980. Abaixaram o banco de trás da velha Caravan, preencheram o espaço com malas e, por cima, jogaram um colchonete. A última camada seríamos eu, minha irmã e meu irmão mais novo, que percorremos deitados mais de 4.000 km em três países.

As escalas ainda estão frescas na memória: de São Paulo a Lages, depois Caxias do Sul, Chuí, Montevidéu, Buenos Aires, Punta del Este, novamente Chuí, Porto Alegre, Torres, Porto Belo, Curitiba e de volta a São Paulo. Dessa micro volta ao mundo em 17 dias, ficaram as lembranças das águas congelantes em Punta, do cupim inesquecível numa churrascaria de beira de estrada em Curitiba e do hotel mal-assombrado em Montevidéu.

Mas sobretudo o que me vêm à mente é o carro e seus habitantes. As intermináveis conversas sobre onde iríamos dormir -- a viagem teve planejamento próximo a zero --, que esbarravam no orçamento apertado e em nossas exigências infantis: "Tem parquinho?" Na direção imprudente com que meu pai revelava seu prazer de piloto frustrado, minha mãe, sua agonia, e ambos sua capacidade de improviso: como sobreviver com um carro a álcool na escassez do combustível no Uruguai e na Argentina?

E meus irmãos. Na minha memória, nesse passado contaminado pelo presente, foi o momento em que fomos mais próximos. Com as músicas, brincadeiras, provocações e inevitáveis brigas simbólicas e físicas. No hiato do espaço-tempo cotidiano que as férias representam, conheci-os melhor e também fui me reconhecendo, entendendo como suportar uma viagem longa, a dormir em hotéis questionáveis e, sobretudo, às despedidas das amizades daqui e dali. Para mim, essa é até hoje a parte mais difícil das viagens, embora cada vez com menos drama. Seria esse um embrutecimento diante da vida ou o prêmio que conquisto a cada retorno?

Neste verão, tive a chance de viajar para a praia com minhas filhas. Pude ver minha filha maior ("posso falar que já tenho nove anos, né, papai?"), mais introspectiva, em sua lida particular para fazer amigos, cercando a turma da recreação meio de longe, chegando de mansinho, ensaiando algumas palavras. E minha filha menor em meus braços, olhando a paisagem de dentro de um mar de águas calmas enquanto filosofava sobre a necessidade de agradecermos, todos, sem exceção, por existir — opinião que, espero, ela tenha conservado na noite seguinte, quando por três vezes pôs os bofes para fora na privada do banheiro.

Acho que o processo de edição de lembranças, sempre benevolente quando se trata de férias, vai se encarregar de limpar esse episódio periférico para conservar o essencial. Para mim, a viagem foi uma recompensa e tanto, espero que para elas também.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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