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Mariana Belmont

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Meu corpo é foda

Léu Britto/DiCampana Foto Coletivo
Imagem: Léu Britto/DiCampana Foto Coletivo

Mariana Belmont

08/07/2021 06h00

Quando eu era criança, eu me sentava em cima do registro de água para ver o movimento da rua. Passava horas ali espiando o mundo todo. Numa tarde, pisei no formigueiro. Foi horrível, aquela dor física, sentida no corpo. Acho até que foi a primeira vez que refleti sobre o meu corpo, enquanto olhava para ele no espelho. Ele era realmente diferente das meninas que andavam comigo na escolinha. Eu era gorda, elas não.

Eu não era a única amiga gorda, até aquele momento. Depois de um tempo, me tornei a única na mira da gordofobia infantil. Na época, eu-criança encarava numa boa as brincadeiras, o fato de ser a única que não tinha ficado com ninguém e a única que que nunca usava roupas iguais das minhas amigas, afinal não tinha meu tamanho.

Sem compreender a fundo, tudo isso mexia comigo, mas eu seguia, afinal eu era a amiga legal da galera legal da escola. Tinha amigos! "Eu cuido dessa dor mais para frente, o importante agora é fazer parte desse clube de amigos aqui". Claro, as coisas foram mudando e no ensino médio eu continuava sendo a amiga gorda, a amiga legal, mas, por fim, delimitei meu espaço e os ataques que eu topava ou não receber.

Mas vinha da minha mãe a maior rejeição por quem eu era. Era a minha mãe que se incomodava por eu ser uma criança e uma adolescente gorda. Foi ela quem me levou ao médico quando eu tinha 17 anos e comprou — por um ano — remédios tarja preta para que eu tomasse e seguisse o plano, que era dela, de ser magra e entrar no padrão.

E eu realmente emagreci, mas voltei a engordar.

E assim foram as tantas tentativas frustradas de emagrecer, entrar em padrão e viver um corpo que nunca foi meu. Permaneço com ele aqui, hoje muito mais tranquila em acomodar em mim a força de quem eu sou, mas foi e é realmente muito difícil chegar até aqui.

De rejeição à falta de amor próprio, eu ainda não tinha entendido que o caminho que me cabia era o acolhimento, o respeito e bem querer a mim mesma. Lembra do "Amai aos outros como a ti mesmo"? Pois é, só dá para amar o próximo se amarmos a nós mesmos antes. Eu pulei essa parte. Mas hoje entendo que o autocuidado e o autoamor é o que possibilita entender a dimensão da minha presença no mundo — e o meu tamanho faz parte disso.

Não conheço ninguém que goste completamente do seu corpo, que nunca tenha feito críticas sobre a barriga, as pernas ou qualquer parte que parece incomodar. Conheço menos pessoas ainda que tenham de fato uma relação boa com o corpo, que encara de frente seu tamanho, peso e formas.

Eu não tinha! Chego a pensar que existiram momentos em que eu queria punir meu corpo por ser quem era, esquecendo que eu era meu corpo, e que meu corpo não era uma coisa a parte de mim.

Esses dias me peguei me olhando no espelho: eu estava de calça de moletom e um top, a minha barriga aparecia. Fiquei então me perguntando qual a razão de eu não me fotografar daquele jeito. Meu corpo tem exatamente a forma que eu gosto e acho legal ele ter. Me fotografei e tenho planos de me fotografar mais, sempre.

Acordar, se ver inteira no espelho e achar seu corpo foda é um processo, comigo passou por relacionamentos com uma pessoa que me olhava inteira e me fazia me sentir tranquila com meu corpo nas ocasiões mais íntimas possíveis. Um corpo que goza.

Meu corpo é foda, porque ele me ajuda a caber no mundo e tem exatamente o tamanho que eu preciso para estar inteira no trabalho, na minha vida e nas andanças pelas ruas. Meu corpo é político quando anda na rua. E como diz a expressão popular: "os incomodados que se retirem", sabe por quê? Porque meu corpo é foda, porque ele está comigo o tempo todo e não foge do rolê.

Meu corpo é foda e vários dias da semana ele pratica exercício físico comigo e tem me puxado para uma alimentação mais saudável e política também, quando me alimento de produtos produzidos por agricultores da zona sul de São Paulo.

Bonito mesmo é se ver representada em corpos na imprensa, nas revistas, nos lugares, imagens de pessoas iguais a mim. E está sendo uma alegria imensa acompanhar o especial do UOL Esporte que mostra cinco corpos perfeitos que desafiam o estereótipo que a sociedade definiu como ideal. As fotos são do fotógrafo JR Duran, as reportagens contam a história de cinco atletas que fogem do padrão de beleza imposto diariamente a cada um de nós. Eles compartilham como a força e o peso são, na essência, o que os transformou em campeões.

Hoje, fechando este texto, abri o UOL e esses corpos livres estavam estampados na primeira capa, em destaque.

Meu corpo é foda, porque agora consigo entendê-lo e ouvi-lo. Hoje, quando algo não me faz bem, sei exatamente o que está acontecendo.

Meu corpo é foda porque ele se adapta e sabe as tretas que passamos juntos em uma sociedade que não aceita pessoas gordas, pessoas com o estereótipo diferente uma das outras. O padrão loiro, magro, feliz e bem sucedido no topo dessa pirâmide precisa acabar e sair da frente das pessoas reais.

Não posso dizer que não tenho medo de não caber e às vezes me sentir inapropriada em alguns espaços. Mas hoje consigo gostar mais de quem eu sou, escolher as minhas roupas e viver a vida no espaço e no tamanho que eu quero.

Aqui nesta coluna, quando escrevo textos que afetam diretamente o governo federal, que expõem o descaso e a falta de responsabilidade que o país enfrenta, eu sou atacada diretamente com discursos de ódio e gordofóbicos: me chamam de gorda, me mandam fazer regime e muitas outras coisas. Tem gente que sai daqui e vai até as minhas redes sociais para me atacar com velha e costumeira gordofobia. Felizmente eu não tenho tempo para quem ataca e espalha ódio, pago ou gratuito.

Meu corpo é foda, e sigo com ele com prazer e respeito, me achando bonita, aceitando cada parte de mim no espelho. Meu corpo é um instrumento de resistência diária. Meu corpo é foda!