Lamento que o Brasil não tenha um presidente da república
Começo esse texto ouvindo o disco novo da Ludmilla, que é uma mistura de orgasmo com cerveja gelada. Recomendo. Se puder, escute Ludmilla também, neste momento. Em muitos dias, sozinha em casa, poucos sorrisos e muitos sentimentos, ouvir e pensar sobre as coisas têm sido formas de não enlouquecer.
Semana passada não teve texto, na verdade teve, mas o planeta se encontra em um momento bem complexo de acertos e erros. Meu texto era um esboço do que me atravessa, uma revolta absurda com um choro preso e uma vontade de botar fogo nas coisas e nos poucos que sobraram no poder. Mas obviamente é apenas vontade, não será possível.
Oscilar sobre quem eu sou e quem eu me torno diante do que estamos vivendo é dolorido e confuso demais, e sem swingue nenhum. Só uma cervejinha gelada ao final do dia.
Quando era criança, pisei em um formigueiro gigante no quintal de casa. Nunca vou esquecer o quanto foi horrível descobrir uma alergia em meio à experiência de quase morte (tô "chorindo" por dentro). Eu ando descalça desde sempre. Saia de dentro de casa e ouvia meu padrinho gritar: "Colooooca o chinelo, Mariana. É tempo de muita formiga no quintal e na terra elas se misturam". As palavras se dissolveram no vento, automaticamente. Gritei um "tá" e segui buscando coisas pra fazer pelo quintal. Ao subir um degrau de terra para me sentar na caixa de luz para ver a rua, pisei no maior formigueiro que já tinha visto no universo.
Meu pé tomado de formiga - e escrevendo isso sinto elas em mim -, acompanhado de um choro entalado. Meu padrinho corria com a mangueira. Choro só de lembrar a dor. Era insuportável. Desmaiei e acordei no pronto-socorro de Parelheiros. Ao abrir os olhos, enxerguei, no canto, meus padrinhos (super bravos) e minha tia, Cássia. Eu nem sentia a perna, mas comecei a chorar e pedir desculpas.
E como vocês podem imaginar, meu padrinho me olhou e disse: "Eu avisei, não avisei?".
O começo da semana passada foi absurdamente ruim. Uma crise de ansiedade, briga sobre política com amigo, descontrole emocional pesado e esse misto de sentimento aqui dentro de casa, muito trabalho, muito tempo comigo mesma e muito desespero em ver o país ruir e não poder resolver. Presidente acorda e vai dar tiro, diz que não lê o que assina e não está nem aí para a quantidade incontrolável de pessoas morrendo a cada instante no Brasil.
Dentro de mim, sinto o fígado descontrolado e um ódio absurdo da gente viver isso assim e ver pessoas próximas morrendo e passando fome. As cidades amanhecem com filas na Caixa Econômica para pegar a renda emergencial de R$ 600. Por que já não basta o sofrimento diário, tem que ser com requintes de crueldade até o fim da vida. Pobre precisa sofrer, né?
Não ser o Estado neste momento é absurdamente ruim. Eu queria ser o Estado junto com pessoas competentes. E cada vez mais entendo que é sobre isso, também, o que precisamos buscar em nossas novas utopias. A gente quer ser Estado, de novo, e ser ainda melhor, bem melhor. Ser grande e melhor.
Não dá.
Temos um governante totalmente fora de controle e que desenha a política do extermínio da população periférica, preta e indígena. Eu já falei sobre isso aqui, e não estou só: é só reparar (e ler!) o monte de artigo e análise, o monte de ação e... nada acontece.
NADA acontece e todo dia o número de mortes aumenta no país, e NADA acontece, NADA acontece, NADA!
E ao mesmo tempo, tudo acontece. O que pode parecer falta de ação, é uma ação genocida de quem escolhe o que faz e o que deixa de fazer, sendo presidente de um país.
Um presidente da república que nem de longe sabe o significado da palavra democracia. E assim o país caminha para a morte de milhares de pessoas e de uma democracia já em coma.
Como disse meu padrinho, no episódio da formiga, "Eu avisei" ou "Eu sabia". E antes que seja tarde, todos que apoiaram esse projeto precisam reagir, com urgência.
Meu texto da semana passada era sobre como meu fígado está. E em uma semana cansativa e desmotivada, quis gritar. Mas respirar também é importante.
No sábado peguei o telefone, liguei em casa, lá em Parelheiros.
Meu padrinho demorou, mas atendeu. Ele, como eu, odeia bastante falar no telefone - perda de tempo, né? Começamos com a parte burocrática da conversa.
- Oi pai, é a Mariana, tá bem?
- Eu sei quem é, vi no bina, Mariana.
- Tá bem?
- Tô ótimo, não sei bem porque tanto desespero. Sinto muito, continuo indo conversar com meus amigos e tomar uma cerveja no bar depois do almoço.
- Eu não liguei pra dizer nada, quero saber se você está bem. Hahaha. E pra pedir cuidado nas saídas e entradas em casa, poxa. É momento de se cuidar, né?
- (barulho com a boca que não sei definir e descrever, mas que ele faz desde que eu sou criança) Tá, que mais? Minha pressão tá ok, meu coração tá ok, saúde zerada. Coisas piores já aconteceram nessa casa e no mundo. Você sabe.
- Eu sei, pai. Mas o senhor já tem idade e eu sou chatona mesmo. É mais cuidado, não tô cuidando da sua vida. Ô pai, lembra quando eu pisei no formigueiro? E você brigou? Por que você tinha avisado?
- Lembro (com um tom de desconfiado). O que você fez? Pisou de novo?
- Nãoooooo. Não tem nem onde fazer isso aqui, né? Mas tenho pensado sobre o que você me disse antes e eu apaguei da cabeça para correr no quintal. Você pediu para eu usar o chinelo e tomar cuidado. Lembra? E depois mandou um "eu avisei". Então eu tô agora fazendo o caminho inverso e pedindo para você se cuidar, para eu não precisar usar um "eu avisei". Espero só usar "eu avisei" para os eleitores do Bolsonaro, pai.
- HAHAHAHA, ai Mariana. E você? Tá bem aí dentro da caixa de sapato?
- Tô, com saudade de vocês.
E por aí foi, mas rápido. Por que, lembra? Falar no telefone não é algo que gostamos muito.
Tá tão difícil.
Saudade das pessoas, do toque, do cheiro, de pisar na rua e circular. Posso escrever um texto inteiro sobre isso depois, mas que saudade de encostar em alguém, esbarrar sem querer e nos olharmos para um pedido de desculpa. Beijar alguém na boca e na bochecha. E do litrão no bar do Mauro.
Cada semana um sentimento, um olhar pra tudo, mas com a absoluta certeza de que precisamos de novas utopias e boas conversas, todas sem conclusões. O agora é sobre quem vamos conseguir salvar. O amanhã é sobre como estaremos se ainda existirmos aqui e sobre o que reconstruiremos.
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