Topo

Júlia Rocha

Coma glúten, amor. Só não seja pobre

iStock
Imagem: iStock

25/10/2020 10h40

Coisa comum em consultório é ouvir pacientes perguntando sobre um ou outro ingrediente e seus riscos à saúde. "Pode ovo?" Dizem os apaixonados por aquele com gema bem amarelinha, caipira, frito de manhã para acompanhar o pão quente que acabou de chegar da padaria. "Pode." Eu respondo. Não é um ovo dentro de um pão, vez ou outra, que há de matar uma pessoa saudável. Depois do ovo, vem as dúvidas sobre o glúten, a cerveja, a manteiga, o óleo vegetal, a banha de porco, o açúcar.

"Pode, doutora?"

"Mascavo ou demerara?"

"Pode fritura? Pode? Pode? Pode? Pode? Pode? Pode?"

Às vezes, tenho a impressão que alguns deles estão me testando.

"Será que ela sabe mesmo me dizer se o óleo de girassol é melhor que o azeite?"

Fico pensando naquelas pessoas, coitadas! Amedrontadas, quase acuadas por um exército de alimentos do mal a persegui-las pelas ruas das cidades. São pessoas sem nenhum problema de saúde, aparentemente sem nenhum transtorno alimentar e que andam de consultório em consultório perguntando aos outros de quantas em quantas horas elas devem comer! Ora, e a fome? Não servia pra isso? E meus desejos de bolinho de chuva e café fresquinho para jogar conversa fora com minha mãe sentada no pé do seu fogão à lenha? Não eram eles que me diziam quando, o quê e em que quantidade eu deveria comer? Será que essas pessoas não tem aquela calça jeans velha no armário que há anos lhes diz quando é hora de pisar no freio das guloseimas e caprichar mais nos passeios a pé ou de bicicleta? E os conselhos de meu pai? "Coma verdura, filha. Não se esquece dos legumes! Quero prato bem colorido! Vá andar de bicicleta. Vá jogar bola com as suas amigas! Não exagere no doce, Dona Formiga!" Nada disso tem mais valor? Cada ingrediente precisa passar pelo crivo e receber o aval de um especialista?

Eu me lembrei dessas coisas porque ainda nesta semana estive conversando por uma dessas plataformas de transmissão ao vivo com um querido amigo que a internet me trouxe. Um padeiro artesanal conhecido e respeitado por seu saber sobre os grãos que viram massa e depois pão quentinho, que vai enfeitar a mesa das famílias no café da manhã. Seu nome é Rene Seifert e foi por meio do canal que ele tem no Youtube que comecei a me aventurar a fazer os pães que comemos aqui em casa. Pois ocorreu de, nesta nossa conversa, ouvir meu mais recente: "Mas, afinal, glúten faz mal?"

Uma pergunta simples mas que me fez pensar em política, em justiça, em direitos humanos, em direito à terra, em manipulação midiática, em democracia popular e tantas outras coisas. Passei os dias a me questionar: o que nos faz mal de verdade?

Esta coluna já estava pronta desde a última quinta, mas eu resolvi reescrevê-la duas horas antes de enviá-la porque o glúten me acordou às 5 da manhã em pleno domingo.

Na coluna que nunca enviarei, eu havia falado sobre a telemedicina e o reforço das iniquidades em saúde. Do que se trata? Mais do mesmo: um bom recurso, um bom uso da tecnologia em favor do paciente, que chega até quem precisa de atendimento de forma mais rápida, evita exposições desnecessárias, evita trânsito, evita a insegurança da cidade, permite uma maior frequência de acompanhamento para pessoas em seus processos de recuperação e vem demonstrando ser um canal seguro e eficiente de comunicação.

Contudo, para falar com seu médico, você precisa ter um. Não bastasse ter acesso a um sistema de saúde que lhe permita falar com seu médico de referência quando necessário, você precisará também de um bom celular ou um computador com câmera, boa internet, ambiente silencioso e mensalidade do plano em dia. Precisará também ser alfabetizado e saber operar os aparelhos. Além disso, o profissional de saúde que lhe atende precisará trabalhar em um local que tenha boa internet e computadores com câmera. É desejável que você tenha um medidor de pressão, um termômetro, algumas vezes um oxímetro, um glicosímetro e fitas para o controle da glicose. Mais do que tê-los, você deverá saber usá-los. Habilidades complexas que exigem certo nível de educação formal.

Agora, veja: Quem são as pessoas que mais precisam de assistência em saúde? Quem são aqueles que estão mais vulneráveis? Quem são as mais expostas a riscos inerentes às suas condições sócio-financeiras? Quem são as menos assistidas, as que se alimentam pior, as que estão sob maior carga de estresse, as que trabalham mais horas por semana, as que não tem lazer, soberania alimentar, educação formal, segurança, acesso à justiça?

Sim. As mesmas pessoas que não terão acesso à tão alardeada e glamurizada telemedicina. Não coincidentemente, as que mais adoecem.

Julian Tudor Hart, médico inglês falecido em 2018, publicou há quase 50 anos o artigo "inverse care law" (a lei do cuidado inverso). Nele, Julian já alertava sobre isso e cravava uma verdade doída mas que segue valendo até os dias de hoje: os que mais precisam de recursos em saúde são, provavelmente, os que menos receberão.

Em uma lógica financista que trata a saúde como um bem a ser adquirido e não como um direito humano, o mercado faz o serviço. Distribui para onde o dinheiro está e nega para onde ele é escasso.

É simples assim. Tenho recebido semanalmente perguntas de jornalistas a respeito da Telemedicina, videoconsultas, assistência remota. Esta é a minha opinião. Se não é para todos, é só mais um jeito de vender o produto Saúde. Nada além. O que dita as regras é a concorrência e as leis de mercado, não a necessidade real.

Assim, temos pessoas saudáveis recebendo ligações aleatórias de seus médicos de planos de saúde para dizer a eles que estão bem e que não precisam de nada, enquanto pessoas adoecidas e que poderiam se beneficiar enormemente de uma intervenção como esta seguem desassistidas.

Sabe o glúten, queridos? Então, ele te dá prazer? Te faz abrir um sorriso? Te faz ter vontade de pular cedo da cama, passar um cafezinho, chamar sua família para sentar à mesa com você? Poxa vida! Coma glúten! Se é assim, aliás, não deixe de comê-lo! A não ser que você seja celíaco ou tenha algum grau de intolerância a esta proteína, coma. Por essas bandas latino-americanas, o que mata as pessoas antes do tempo que elas deveriam morrer é ser pobre, ser indígena, ser mulher, ser negro, ser uma pessoa com deficiência, ser sem teto, sem terra.

Deixe essa bobagem pra lá. Tome aqui seu pão quentinho. E me passe o café