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Júlia Rocha

Nossa sociedade tem muito mais experiência em segregar do que incluir

Getty Images
Imagem: Getty Images

11/10/2020 09h20

Um país que não protege a infância das mais diversas maneiras, seja garantindo pré-natal, assistência adequada ao parto e ao puerpério, renda, licença maternidade e paternidade, tempo de aleitamento materno exclusivo ou vagas nas creches públicas e nas escolas está caminhando em velocidade para um futuro falido.

O Brasil, além de negligenciar a infância, tornou-se recentemente um país que deseja negar a todas as crianças o direito a uma convivência social saudável com as diferenças e que nega às crianças com deficiência o direito básico de existir à luz do dia. Fora das sombras.

Na semana passada, o governo federal divulgou o decreto 10.502 que retoma as "escolas especiais", ou seja, as instituições especializadas em atender estudantes com deficiência como alternativa à escola regular. O decreto pegou todo mundo de surpresa, pois foi pensado sem ampla participação da sociedade, sobretudo, sem a participação das pessoas com deficiência. Logo na semana seguinte, o Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) discutiu o Decreto e, tendo a chance de dar seu voto pela revogação, decidiu acatá-lo. Dessa forma, o Conselho passou a mensagem ao Executivo de que pode tomar decisões sobre as pessoas com deficiência sem a sua participação, ferindo um dos princípios dos movimentos sociais das pessoas com deficiência: nada sobre nós sem nós.

São inúmeros os problemas do decreto, a começar pelo fato de que é inconstitucional, pois fere a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que, no Brasil, tem status constitucional desde 2009. De acordo com a lei, devemos garantir nacionalmente um sistema de educação inclusivo em todos os níveis do ensino e é expressamente proibido excluir pessoas com deficiência do sistema educacional em razão da deficiência.

Sabemos que este ainda não é um direito assegurado aos estudantes com deficiência, sobretudo aqueles que são considerados pessoas com deficiência grave. Por isso, o decreto parece sedutor às famílias, porque alega que terão direito de escolher onde querem matricular seu filho: se na escola regular, se na instituição especializada ou se na escola bilíngue (libras). Como se educação fosse uma escolha, e não um direito a ser assegurado. O texto, portanto, chega às famílias de crianças e jovens com deficiência que já estão cansadas de lutar para que seus filhos possam acessar a escola, participar dela e aprender com os colegas. Estão exaustas de lutar contra a discriminação e a violência, com os olhares tortos, com a solidão nas reivindicações.

Estão desacreditadas do sistema educacional que presume incapacidade de seus filhos e os trata como problemas, ofertando pouca ou nenhuma condição de aprendizagem. Para essas famílias, o Decreto parece a solução mágica: para que meu filho não sofra discriminação ou preconceito, eu "tomo a decisão" de separá-lo. Não percebem que a ausência de escolas públicas, gratuitas e de qualidade, de escolas pensadas com e para todos os estudantes não lhes deixa outra opção.

Nós, como sociedade, temos muito mais experiência em segregar e excluir, do que propriamente em incluir. A legislação que garante que a escola deve ser para todas as pessoas tem apenas 12 anos! E a geração que decide hoje por retomar o modelo de segregação é aquela que aprendeu com ele! Aprendeu a naturalizar a hierarquização das vidas, aprendeu que categorizar e segregar são procedimentos aceitáveis. Colhemos hoje, agora, a triste herança de uma vida de convivência cerceada. Conhecemos bem o que significa ter uma identidade hegemônica mas benevolente, que são as pessoas consideradas normais, e uma identidade subalterna mas "respeitada", que são as pessoas com deficiência. Com quantas pessoas com deficiência você convive? Quantas estudaram com você? Quantas foram seus professores? Quantas são seus amigos? Com quantas você já se relacionou intimamente? Invisibilizadas, silenciadas, escondidas e mortas, as pessoas com deficiência não vieram a compor a nossa ideia de mundo, tampouco de humanidade. E um dos principais caminhos de reparação para isso é a educação inclusiva.

Outro aspecto que faz o Decreto parecer positivo é que enfrentamos lacunas na saúde e na assistência social. Assim, sem poder contar com o amparo adequado destes serviços, as famílias enxergam que a escola pode ceder lugar para se tornar um local de tratamento. Aceitam barganhar pedagogia por terapia. É disso que se trata essa conversa sobre clínica-escola e as chamadas escolas especializadas do decreto. Precisamos reforçar que a escola é lugar de ensinar e aprender e que, lutar pela educação inclusiva significa também lutar pelo SUS e por todos os serviços públicos que nos possibilitem ter uma vida com dignidade.

Por outro lado, é importante destacar que não se trata de fechar abruptamente essas instituições especializadas, mas de fazer uma transição para um modelo educacional inclusivo com robustos investimentos em qualificação e remuneração de professores, em acessibilidade, em tecnologias assistivas, sem mais financiar qualquer modelo de segregação.

Com o Decreto, o poder público vai destinar uma fatia generosa dos recursos da educação para essas instituições, que também receberão recursos das pastas da saúde e da assistência social. Ou seja, pouco ou nada será investido na escola comum, levando a uma pressão cada vez maior para a migração dos estudantes com deficiência para espaços segregados. A quem interessa esse projeto de sociedade? Quem se beneficia do deslocamento de investimentos da rede pública e das escolas regulares para as instituições especializadas? Quem ganha? Quem perde? Essas são perguntas que precisamos nos fazer para além das obviedades.

O sucateamento da Educação e a manutenção de estruturas de hierarquização e segregação de vidas é um projeto de dominação e de perpetuação das desigualdades. É por isso que investir na educação inclusiva não é interessante às elites, ao governo? Porque significa reinventar o sistema educacional de modo a considerar todos os alunos sujeitos capazes de fazer escolhas críticas, conscientes de seus direitos. Significa pensar uma comunidade que se relaciona pelo princípio da igualdade e, assim, respeita e valoriza as diferenças. Essa comunidade, fortalecida, encorajada, unida, que não se submete aos interesses dominantes não interessa a um projeto de mundo excludente.

Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta. Normalizar significa eleger arbitrariamente uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é "natural", desejável, única.

A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. Então, são as outras identidades que são marcadas como tais. Numa sociedade em que impera a supremacia branca, por exemplo, "ser branco" não é considerado uma identidade étnica ou racial. Num mundo governado pela hegemonia cultural estadunidense, "étnica" é a música ou a comida dos outros países. É a sexualidade homossexual que é "sexualizada", não a heterossexual.

Até quando vamos nos deixar envolver pela hierarquia que define quem está dentro e quem está fora dos supostos padrões de normalidade, das possibilidades de participação do mundo sem ao menos nos questionarmos ou nos indignarmos?

Nesse sentido, uma das disputas no campo das pessoas com deficiência, mas que se estende a outros grupos e identidades, é a de que a diferença não seja vista como inimiga da ordem estabelecida, um peso, um fardo, um desvio, algo que precisa ser administrado e controlado, talvez colocado na vitrine para dar um certo ar de civilidade. Por isso, no movimento social das pessoas com deficiência, a gente defende que é preciso aleijar o mundo, fazer fissuras, para que todas as formas de ser e estar vivo possam ter lugar. O movimento faz isso, então, subverte uma palavra e sua representação e reivindica a narrativa para poder dizer de si, e assim, fundar novas perspectivas, modificar as identidades, arejar, expandir, alargar... aleijar!

Dividir e classificar significa, neste caso, também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados.

* Assinam esta coluna Júlia Rocha e Mariana Rosa mulher com deficiência, mãe, jornalista e ativista dos direitos da pessoa com deficiência.