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Júlia Rocha

Estamos esgotados e, diferente dos equipamentos, somos insubstituíveis

Getty Images
Imagem: Getty Images

02/08/2020 04h00

Estamos esgotados.

E não há mesmo como sairmos ilesos. São mais de 4 meses em constante estado de alerta. Respiração suspensa, musculatura tensa, olhos vigilantes, cérebro atento. Seguimos firmes, ou mais ou menos firmes, ou o quão firmes conseguimos. De pé, matando no peito o descaso, a ignorância, e todos os absurdos que avançam lado a lado com esta tragédia sanitária que já vitimou mais de 90 mil brasileiros e segue avançando.

Estamos esgotados.

De pé, nas UPAs, nas unidades básicas, nas ambulâncias do SAMU, nos CERSAMs, nos Hospitais, nas UTIs, nos Hospitais de Campanha, vamos em frente, sem coragem de comer, de recostar o corpo para um breve descanso, de fazer xixi (e, portanto, de tomar água) no plantão.

Há um desgaste invisível, que não estampa jornais e nem nossas fotos em redes sociais. Há um esvair de imensa energia para que sigamos tensos, atentos, preparados, cuidadosos.

A família que nos espera em casa confia que não erraremos sequer um movimento. Estão certos de que não faremos absolutamente nada que nos coloque ou os coloque em risco. Paramentar, desparamentar, comer, fazer xixi. Tudo precisa ser medido, calculado, ensaiado. Cada dia. Entra semana, sai semana. Repetimos esse balé duro, engessado, amedrontado. E como cansa!

Respiradores, monitores, bombas de infusão, aspiradores são todos obedientes. Basta ligá-los a uma tomada, programá-los, comandá-los. Já o corpo teima. Não há ordem que baste para um ser humano cansado. Não há comando que uma fibra muscular extenuada aceite obedecer.

Da janela do carro vemos as ruas cheias, as máscaras no pescoço, as conversas desnecessárias e adiáveis, os churrascos dos vizinhos, o futebol, as comprinhas para espairecer. Do vidro que nos separa de nossos pacientes, vemos uma solidão imensa de quem teima em viver, mas sente a falta dos que os esperam em casa. Grande parte do nosso desgaste vem dessa contemplação. Como diria um colega médico, sentamos na primeira fila da vida com direito a ver de tudo. E, ultimamente, temos visto mais cenas tristes do que o que toleramos ver. Isso também cansa.

Sabe, eu só queria dizer isso. Que estamos cansados e que estamos parando, como máquinas que pifam. E não há outros de nós para nos substituir. Por que, veja: quanto tempo leva para se formar uma fisioterapeuta? Uma enfermeira? Uma técnica de enfermagem? Uma psicóloga? Uma nutricionista? Uma terapeuta ocupacional? Uma médica? Muito mais do que quatro ou cinco meses. Significa que somos os mesmos nesta toada longa desde o começo. Somos os mesmos corpos. Exigidos, infectados, intubados, mal-dormidos, levados ao esgotamento e ao desencanto por todos esses longos meses.

Não há poesia que dê jeito. Não há noite que descanse. Não há.

Contudo seguimos. Contudo tentamos nos manter firmes. Firmes, assim... Como eu diria? Meio firmes. Mais ou menos firmes a ponto de aguentar a lida, mas meio esgotados a ponto de não aguentar encarar a nossa própria falência.

Mania que herdei de minha mãe, sempre busco saídas mentais para as angústias do cotidiano. Quando vivo um dia difícil, um período problemático, volto meu olhar para o fim dessa peleja. Penso que é uma fase e que se eu for por ali, por ali e por ali, vou encontrar a porta de saída e tudo vai voltar a ficar mais leve.

Dia desses me peguei tentando pensar em 2021, uma roda de samba, meus amigos, todo mundo vacinado, tratamento eficiente desenvolvido, vida mais próxima do que costumávamos chamar de felicidade. Gravei a letra do samba que tocava, o cheiro do perfume das mulheres, o som do surdo que faz vibrar o coração e acalenta a alma. Que alegria fechar os olhos e descansar.

O samba era do Zeca:

O dono da dor sabe como dói, tem jeito não. O peito rói.