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Montadoras vão a 'tapetão' contra importados, mas sabem que têm de melhorar seus carros

Apito amigo, tapetão, bola nas costas: em meio a tantos artifícios e caneladas, um carro como o novo Palio mostrou em 2011 que Fiat (e as outras) sabem fazer produtos melhores - Murilo Góes/UOL
Apito amigo, tapetão, bola nas costas: em meio a tantos artifícios e caneladas, um carro como o novo Palio mostrou em 2011 que Fiat (e as outras) sabem fazer produtos melhores Imagem: Murilo Góes/UOL

PEDRO KUTNEY

Colaboração para UOL Carros

22/12/2011 19h49

O ano de 2011 colocou à prova a capacidade da indústria automobilística nacional de ganhar o jogo do mercado brasileiro com sua própria competência. Ao que parece, o setor não passou no teste, pois precisou apelar ao "tapetão" -- assim como fazem clubes de futebol que recorrem à confederação ou Justiça quando não concordam com o resultado do campeonato. Em vias de perder a partida para carros importados, entrou em campo o protecionismo do governo, que numa canetada expulsou alguns jogadores estrangeiros adversários pela via do aumento de imposto para modelos de fora do clube das montadoras instaladas no Brasil.

E assim 2011 entrará para a história do setor automotivo brasileiro como o ano em que os jogadores nacionais precisaram da ajuda do juiz (o governo) para vencer o jogo da concorrência. Parece que faltou preparo físico aos tais "carros projetados para o gosto do consumidor brasileiro", como gosta de propalar a indústria sobre os modelos feitos aqui -- um eufemismo para veículos depenados de tecnologia, com acabamento pobre, design antigo e preço alto pelo pacote limitado oferecido. Pois esses jogadores terminam o ano sem fôlego e foram "cornetados" pela torcida (os consumidores).

Deverão ser vendidos este ano no Brasil não muito mais do que 2,5 milhões de veículos leves (automóveis e comerciais leves) fabricados aqui mesmo, o que significará queda em torno de 4% sobre o resultado de 2010. E o desempenho só não foi pior porque as montadoras se socorreram com os frotistas, principalmente locadoras, que em 2011 foram responsáveis por quase 30% das compras, em troca de grandes descontos, em torno de 30%.

Em contrapartida, as vendas de importados devem chegar a algo perto de 860 mil unidades, crescendo 30% sobre o ano anterior -- sendo que 55% desses carros vêm da Argentina e México, pelas mãos dos próprios fabricantes instalados aqui, sem pagar imposto de importação (de 35% para os de outras origens) nem os 30 pontos porcentuais de elevação do imposto sobre produtos industrializados (o IPI), que desde 16 de dezembro passaram a ser aplicados a modelos que vêm de fora do Mercosul e México.

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Ou seja: em termos porcentuais, os estrangeiros estavam ganhando de goleada dos nacionais. Prova maior do fiasco está na produção das fábricas brasileiras de automóveis, que este ano cresceu apenas 1% e deverá avançar outros míseros 2% em 2012; bem abaixo, portanto, da expansão do mercado interno.

O que explica essa virada de jogo é que o mercado brasileiro mudou, mas não mudaram as montadoras. O fator principal dessa mudança foi a maior restrição de crédito em 2011, depois que o Banco Central, ainda em dezembro de 2010, aumentou o depósito compulsório para financiamentos mais longos e sem entrada, o que encareceu o crédito e tirou do mercado de zero-quilômetro a chamada classe média emergente. Calcula-se que esse impacto pode chegar a 300 mil compradores a menos no ano.

O segmento mais prejudicado por esse movimento foi o dos carros mais baratos, os 1.0, aqueles "feitos para o gosto do consumidor brasileiro", ruins e caros pelo que oferecem, mas que cabiam no bolso em suaves prestações. Resultado prático: após as restrições ao crédito, as vendas de modelos populares 1.0 nunca foram tão baixas, caindo a 43,5% do total em novembro -- esse índice chegou ao máximo de 71% em 2001 e era de 50% um ano atrás. Mas o porcentual seria ainda menor se, de novo, não fossem as vendas para frotistas/locadoras. Segundo alguns concessionários, as compras de 1.0 no varejo hoje mal passam de 30% do total.

Ao mesmo tempo, de 2003 ao início de 2011, a renda média dos brasileiros cresceu expressivos 33% e quase 40 milhões de pessoas passaram a integrar a classe média, outros 9 milhões ingressaram nas classes A e B, segundo dados do IBGE. Na prática, isso quer dizer que muitos brasileiros ganharam poder de compra e, portanto, aumentaram suas exigências de consumo; muitos já podem comprar bens de melhor qualidade -- e muitos nesse período já tinham um carro usado para dar de entrada em um zero-quilômetro.

O APITO AMIGO
O problema é que a indústria nacional não tinha essa "coisa melhor" a oferecer justamente no momento em que isso mais foi demandado. Mas as importadoras tinham -- inclusive as próprias montadoras, que trazem da Argentina e México modelos de maior valor agregado do que os fabricados aqui. Não se trata de modelos de alto luxo que custam o preço de um apartamento, mas apenas alguns produtos bem equipados, principalmente coreanos e chineses, vendidos com nível de equipamentos maior e valores inferiores aos de similares nacionais. Assim pode-se dizer que as fábricas instaladas no Brasil "perderam o tempo da bola", ou que "tomaram bola nas costas" dos importados.

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Os veículos coreanos e chineses já representam a terceira e quarta marcas mais vendidas de importados no País, respectivamente, e juntos dominaram quase 30% das vendas de estrangeiros em 2011, ou 7% do mercado total de automóveis e comerciais leves este ano.

Não parece muito, mas isso significa algo como 230 mil unidades, o equivalente à produção anual de uma fábrica inteira, e das grandes, como a da Ford em Camaçari (BA). Foi essa comparação que reacendeu o instinto protecionista do governo, que entrou em campo para acabar com o que chamou de "invasão de carros importados".

O problema é que isso foi feito sem nenhuma grande exigência de desenvolvimento tecnológico local ou melhoria de qualidade do produto feito aqui, que dessa forma poderá continuar a ser caro e ruim, sem concorrência. Essa foi a tônica de 2011: ataque das marcas importadas e reação das nacionais com o "apito amigo" do governo.

MUDANÇAS À VISTA
Por certo, felizmente, a indústria não poderá para sempre continuar com a estratégia de explorar um mercado-ilha, com produtos que só existem aqui, pois o consumidor também evolui e irá exigir as tais coisas melhores. O governo promete exigir mais na edição do novo regime automotivo que está em gestação, com a concessão de benefícios tributários em troca de desenvolvimento local. Mas também já existe um movimento dos fabricantes nesse sentido e alguns exemplos já começam a aparecer.

Ao lançar a quinta geração do Palio, a Fiat projetou um carro maior e melhor equipado. A Ford promete que, de 2012 a 2015, todo o seu portfólio será convertido para carros globais, iguais em tecnologia e qualidade às melhores práticas mundiais, a começar pelo novo EcoSport no ano que vem e continuando com a produção do New Fiesta no Brasil. A Volkswagen declara, desde 2010, que trabalha na globalização tecnológica de seus modelos feitos aqui.

A General Motors afirma que renovará inteiramente quase 20 modelos nos próximos dois anos. A PSA Peugeot Citroën vai no mesmo sentido, diz que quer ser líder em compactos premium e lança, em fevereiro próximo, o Peugeot 308 e, um ano depois, o 208. "As perspectivas futuras são muito promissoras", costuma dizer Cledorvino Belini, presidente do Grupo Fiat na América Latina e também da Anfavea, a associação brasileira de fabricantes de veículos, principal responsável pela orquestração das medidas protecionistas anunciadas em setembro passado. Belini destaca que o Brasil passa por um feliz momento de crescimento econômico, com expansão da renda e bônus demográfico que concentra a maior parte da população em idade ativa de produção e consumo.

Juntos, esses fatores poderão alçar o país à posição de sétima maior economia do mundo em 2013 e à quinta até 2025, segundo projeções da consultoria Price WaterhouseCoopers. "O mercado automobilístico brasileiro tem potencial para continuar crescendo nos próximos anos, impulsionado pelo ritmo de atividade econômica, pelo aumento da oferta de crédito e também pela entrada de novos consumidores", resume Belini.

ALTO POTENCIAL
Do atual mercado de 3,6 milhões a 3,7 milhões de veículos por ano, as estimativas dos analistas apontam para um crescimento de 4% a 5% no ano que vem. O mercado, contudo, pode surpreender. Para isso bastaria o governo afrouxar as exigências de depósito compulsório para financiamentos mais longos e sem entrada, reduzir os juros da economia (como já está fazendo) e conceder algum abatimento de imposto. Isso seria suficiente para atrair de volta ao mercado algo como 200 mil a 300 mil consumidores extras.

Mas há espaço para crescer muito mais. Como o índice brasileiro de 6,5 habitantes por veículo ainda é relativamente alto, a maioria dos especialistas acredita que com o crescimento econômico a indústria ainda tem espaço de sobra para avançar no Brasil. A média das projeções é de um mercado acima de 5 milhões de veículos vendidos por ano já em 2015 e de 6,5 milhões até 2020, com taxa de crescimento de 8% ao ano. São números mais que suficientes para atrair a atenção de quase todos os fabricantes do planeta.

Os fabricantes de veículos no Brasil investiram US$ 3,6 bilhões de 2004 a 2006, na média de US$ 1,2 bilhão por ano, e elevaram a capacidade total de produção para 3,5 milhões de unidades/ano. De 2007 a 2010, os aportes saltaram para US$ 11,8 bilhões, ou US$ 2,9 bilhões/ano, aumentando o potencial das fábricas para 4,2 milhões/ano. Mas nada se compara com o que está para acontecer nesta década.
Com aportes médios de US$ 4,6 bilhões por ano até 2015, a capacidade saltará para 6,3 milhões de veículos por ano, com a ampliação das 18 plantas existentes e a construção já confirmada de oito novas fábricas.

É como adicionar um Canadá à produção brasileira de carros. Isso segundo informações divulgadas e confirmadas só até a metade de dezembro, pois mais empresas ainda podem anunciar investimentos no começo de 2012.

Muito disso tudo será financiado pelo governo (leia-se, portanto, povo brasileiro), por meio de incentivos tributários e financiamentos subsidiados de bancos públicos, como o BNDES. Ou seja, há um vasto potencial de crescimento pela frente, mas cabe ao governo exigir mais e beneficiar menos, com a criação de legislações e incentivos que promovam a fabricação local de carros com mais segurança e redução de consumo e emissões, a exemplo dos países civilizados que queremos ser. Só assim o Brasil automotivo entrará no jogo do desenvolvimento real.

Pedro Kutney é jornalista; ele é editor do site Automotive Business