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Agora protegida, indústria automotiva remete US$ 4 bilhões às matrizes

Com a penalização sobre os importados, carros feitos no Brasil perdem parâmetros para evoluir - Antonio Scorza/AFP
Com a penalização sobre os importados, carros feitos no Brasil perdem parâmetros para evoluir Imagem: Antonio Scorza/AFP

PEDRO KUTNEY

Especial para UOL Carros

17/10/2011 20h15

Nos primeiros oito meses deste ano, os fabricantes de veículos instalados no Brasil mandaram para o exterior US$ 4 bilhões a título de pagamento de lucros e dividendos às suas controladoras. O valor é recorde, 33% maior do que o observado no mesmo período de 2010 e quase supera o total do ano passado inteiro (US$ 4,1 bilhões). Com essa cifra, a indústria automobilística é atualmente o setor econômico que mais remete lucros e dividendos para fora do país, sendo responsável por 21,2% das remessas registradas de janeiro a agosto.

Nada contra o lucro: empresas sustentáveis têm de ser lucrativas. Contudo, é de se perguntar: se as montadoras multinacionais são tão rentáveis aqui, como fica comprovado pelo desempenho dos números acima, por que precisam do protecionismo do governo?

A resposta só pode ser: para lucrar mais ou, no mínimo, continuar lucrando como agora. Até aí nada demais, é do jogo de qualquer regime capitalista. O problema é precisar lançar mão de escritórios de lobby em Brasília -- em vez de usar os centros de engenharia para desenvolver produtos melhores e mais competitivos -- para seguir ganhando sem competição.

Ao impor, em 15 de setembro passado, um escandaloso aumento de 30 pontos porcentuais no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) aplicado a veículos importados de fora do Mercosul e México, ou que não tenham conteúdo mínimo de 65% de componentes nacionais, o governo brasileiro chancelou a criação de um oligopólio, algo banido da maioria das economias desenvolvidas do mundo, justamente onde ficam as sedes das corporações que se beneficiam desse mercado cativo.

O argumento do governo, de que o IPI maior protege a indústria nacional de uma suposta invasão de veículos importados no Brasil, parece incoerente diante do fato de que simplesmente não existe "indústria nacional" nesse setor, dominado desde sempre por multinacionais que, com suas gordas remessas de lucros, ajudam a aprofundar o déficit da conta corrente externa brasileira. Além disso, as montadoras estão entre as maiores importadoras do país, pois são responsáveis por trazer mais de 80% dos veículos estrangeiros vendidos aqui atualmente. Também compram muitos componentes e insumos de fora.

As duas coisas juntas (muitos veículos e alguns componentes importados) colocam a indústria automobilística na lista elaborada pelo Ministério do Desenvolvimento dos 40 maiores importadores do Brasil. Entre eles, 14 são montadoras com fábricas no país -- que juntas, de janeiro a agosto deste ano, gastaram a impressionante soma de US$ 12 bilhões com importações próprias, quase o total das importações de veículos, de US$ 14,1 bilhões no mesmo período. Somente as compras externas diretas das quatro maiores fabricantes (pela ordem dos gastos, Volkswagen, Ford, Fiat e General Motors) totalizam quase US$ 4 bilhões. De quais importações, então, o governo brasileiro precisa proteger o mercado doméstico?

IMPOSTOS, LUCROS, DEPENAÇÃO
O desmedido apetite do governo por arrecadar impostos e a obrigação dos fabricantes de gerar altos lucros para as matrizes são os principais ingredientes do pior carro mais caro do mundo: o carro made in Brazil, depenado de tecnologias de uso comum em diversos países para poder acomodar em mais de 50% de seu preço fartos impostos e lucros. Como nenhum dos dois lados cede, o setor automotivo nacional continua preso ao círculo vicioso em que está metido desde a sua instalação no Brasil, há mais de 50 anos, com veículos fabricados aqui quase sempre ultrapassados e caros demais pelo que oferecem.

Alguns discursos de presidentes e altos executivos da indústria dizem que isso vai mudar em breve, porque o Brasil teria finalmente entrado na rota de globalização tecnológica. Mas então, se isso é verdade, por que precisam de proteção? E esse protecionismo, diga-se, é contra modelos apenas um pouco mais bem equipados do que os nacionais, caso de chineses e alguns coreanos, que já vêm com confortos como ar-condicionado e direção assistida por preços iguais ou inferiores ao de equivalentes feitos em fábricas brasileiras. Ou seja, não há nada de muito mais que a dita indústria nacional não possa fazer. A questão, portanto, é o custo maior para se fazer isso aqui -- e aí entra-se de novo no problema dos impostos e lucros excessivos.

Por óbvio, chega-se à conclusão de que todo o discurso da competitividade internacional é correto, mas não vale uma moeda de real furada -- ainda que supervalorizada. Isso porque o protecionismo ora concedido aos fabricantes instalados no Brasil consolida o atraso, acomoda empresas em torno do mais do mesmo, não incentiva ninguém a projetar produtos vendáveis em qualquer parte do mundo. O carro nacional, portanto, está agora protegido artificialmente em seu próprio território, não tem bons exemplos para evoluir, nem ganhou um milímetro sequer de competitividade internacional.

Para justificar a repetição de erros já cometidos tantas vezes no passado nem tão distante assim, o governo informa que as medidas restritivas às importações são apenas emergenciais (em princípio duram só até 31 de dezembro de 2012) -- e que depois virá um novo regime automotivo de fato, com incentivos à inovação e evolução tecnológica. Mas, de qual "emergência" se está falando? Das remessas de lucros relatadas no começo deste texto? Ou da necessidade de fazer essa indústria evoluir de fato no país, com produtos melhores?

Teria sido mais produtivo pular o "protecionismo emergencial", porque ele parece desnecessário e, ademais, mancha a imagem de segurança jurídica do Brasil no cenário internacional, indispensável para atrair bons negócios ao país. É melhor ir direto ao ponto e incentivar a competição por meio da evolução tecnológica -- e rápido --, para que de fato possa ser colocado em prática o programa de política industrial esboçado pelo governo, o chamado Brasil Maior, para não ficar só no IPI maior.

Pedro Kutney é jornalista; texto originalmente publicado em Automotive Business