O homem que perdeu os movimentos do corpo e está prestes a se tornar especialista em cirurgias
Odair Diniz se formou em Ciências Biomédicas na Unesp e agora cursa um mestrado na Unicamp. Não seria nada de mais, se ele não tivesse uma doença degenerativa que praticamente lhe tirou os movimentos.
Odair Henrique Gavério Diniz nasceu em Porto Ferreira (SP), cidade de 55 mil habitantes a cerca de 240 km de São Paulo, em 22 de janeiro de 1993. Em 2016, ele se formou em Ciências Biomédicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, também no interior paulista.
Em agosto de 2018, começou um mestrado em Ciências da Cirurgia, na área de pneumologia, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Hoje, ele também atua como auxiliar no programa de estágio docente de neurologia (aplica provas e tira dúvidas dos alunos do 4º ano de Medicina) e é voluntário no laboratório de reabilitação raquimedular no Hospital de Clínicas, ambos dessa universidade.
Isso tudo não seria tão extraordinário se Odair não sofresse de uma doença neuromuscular degenerativa progressiva que lhe tirou praticamente todos os movimentos.
Foi ainda bebê que Odair foi diagnosticado como portador de Atrofia Muscular Espinhal tipo II (AME2), doença similar e tão grave e incapacitante quanto a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), de que sofria o famoso físico britânico Stephen Hawking, morto em 2018.
A principal diferença entre as duas é a época da vida em que se manifestam (mais na cedo na AME2) e na velocidade de suas progressões (mais rápida na ELA).
"Meus pais logo perceberam que eu não engatinhava, só rolava", conta. "Eles suspeitaram que eu tivesse AME, porque um primo mais velho meu sofre da mesmo mal. Então, o diagnóstico foi rápido."
A doença
A AME2 se caracteriza pela degeneração e perda de neurônios motores da medula espinhal e do tronco cerebral. Os primeiros sintomas aparecem entre os 6 e 18 meses de vida — o bebê apresenta dificuldade para sentar, ficar de pé ou caminhar sozinho. Com o tempo, a doença leva a fraqueza e atrofia muscular progressivas.
Os pacientes também passam a apresentar hipotonia (redução ou perda do tônus muscular), paralisia, arreflexia (falta de reflexos), amiotrofia (atrofia de tecido muscular) e miofasciculação (contração muscular pequena e involuntária).
Esses problemas afetam primeiro as pernas, depois os braços e, por último, os músculos do tronco.
De maneira semelhante, a ELA é uma doença neurodegenerativa progressiva, relativamente rara, que afeta ambos os neurônios motores, tanto superiores quanto inferiores. Assim como a AME2, ela causa fraqueza e atrofia muscular progressivas.
Quanto ao tônus muscular, no entanto, ocorre o contrário — ou seja, um aumento, que leva a um sintoma chamado espasticidade e que, por sua vez, origina um aumento involuntário das contrações musculares.
"Outra diferença é que sua progressão é extremamente rápida, evoluindo para paralisia, com um tempo de sobrevivência de 1 a 5 anos após os sintomas iniciais", explica Odair à reportagem da BBC News Brasil.
Infância e adolescência 'tranquilas'
Desde muito cedo, ele sempre soube de sua doença e de suas limitações. Apesar disso, viveu uma infância e uma adolescência que classifica como "tranquilas".
"Eu tinha mais movimentos", explica. "Nunca tive nenhum problema, sempre fui conhecido e popular na minha cidade. Eu frequentava a escola e as festinhas na adolescência normalmente, e nunca sofri bullying, nem nada disso."
Os problemas começaram a surgir mais tarde, por volta de 2013, quando ele já estava na faculdade. A partir de então, passou a não conseguir mais realizar sozinho tarefas básicas e a situação piorou. Aos poucos, Odair foi perdendo os movimentos.
"Sempre tive limitações motoras, mas elas pioraram com o tempo", conta.
"Inicialmente, tinha dificuldade em atender ao telefone, depois não conseguia mais mexer no celular. Em seguida, fui perdendo a capacidade de escrever, jogar videogame, tomar água sozinho, de arrumar a mão no joystick da minha cadeira de rodas motorizada e, por fim, de mastigar. Hoje, dependo da minha mãe para tudo."
A capacidade de mastigar ele readquiriu recentemente, graças ao medicamento Spinraza, único aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da AME.
É uma medicação extremamente cara: a dose de 5 ml custa R$ 300 mil. Para ter acesso a ele, Odair e sua família tiveram de entrar na Justiça contra seu plano de saúde. São quatro doses iniciais, de quinze em quinze dias; a primeira ele tomou em 12 de julho, e depois são três por ano. "Já senti melhoras para comer", conta. "Antes só tomava sopas e caldos ralos. Hoje consigo mastigar alimentos sólidos de novo."
Limitações e o interesse pela ciência
Tão ruins quanto as limitações físicas são as do convívio social, impostas pela doença.
"Depois que deixei de me virar sozinho, as pessoas começaram a se afastar", lamenta Odair.
"Não tenho amigos, não encontro gente para sair. Parece que sou um estorvo. Então, passei a ficar só em casa ou na universidade. Mas estou tentando superar isso. Voltei esse mês a sair. Sozinho, mas saio — ainda estou do mesmo jeito, sem movimento. Estou tentando me ressocializar. É muito ruim passear sozinho. Mas é um pouco melhor do que ficar trancado no quarto."
Por isso, Odair diz que está sempre em um processo de adaptação. Seu interesse pela ciência veio disso. No início, ele não queria ser pesquisador e tentou arrumar emprego em vários lugares do Estado de São Paulo. Sem sucesso.
"Um dia fiz uma prova para residência num centro de diagnóstico por imagem em Ribeirão Preto e corrigi duas questões erradas, que o próprio gerente que fez a prova não sabia que não estavam corretas", lembra.
"Não passei na prova e depois meu pai falou que o rapaz havia conversado com ele e dito que eu não tinha chance por causa das minhas limitações físicas. Fiquei extremamente triste e revoltado."
Depois, quando ingressou na Unesp — inicialmente no curso de Ciências Biológicas, no campus de Jaboticabal, onde ficou um ano —, Odair teve uma depressão muito forte e quis desistir várias vezes.
"Mas eu me dizia que se eu desistisse ia ficar mais louco ainda", recorda.
"Então, me recuperei e por causa da minha mãe fiz tudo que sempre sonhei. Ela me manteve em pé e confiante em que tudo ia dar certo. Por isso, disse para mim mesmo: já que não consigo emprego, vou fazer o que eu faço de melhor, que é estudar. Coloquei na minha cabeça que iria me tornar o melhor pesquisador da minha área e ajudar aqueles que, como eu, são competentes, mas a vida os subjuga e os coloca para baixo. Hoje, estou na área de pneumologia, mas sou um ávido estudioso em neurologia, nas sub-áreas neuromuscular e de lesões raquimedulares."
O mestrado
Como tudo em sua vida, ingressar no mestrado não foi fácil.
"No início, passei por diversas dificuldades", conta. "A princípio, com minhas diversas limitações, não me aceitavam, dizendo que eu não daria conta do serviço. Insisti por quase um ano, até que os professores Marcos Mello Moreira e Monica Corso Pereira, hoje meus orientadores, me deram essa oportunidade, pela qual sou imensamente agradecido. Eu preciso de ajuda para auscultar os pacientes e para fazer algumas anotações, mas dou conta do trabalho."
Odair faz na Unicamp seu mestrado em ciências da cirurgia, uma área que trata do conhecimento já estabelecido e novas técnicas e procedimentos operatórios. Em suas pesquisas na área de pneumologia, ele estuda a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) — colheu dados tomográficos e outros testes de 60 pacientes, que serão analisados como parte de seus estudos.
Além disso, Odair auxilia duas alunas de Medicina da Unicamp no trabalho de conclusão de curso delas.
Sua previsão é terminar o mestrado no primeiro semestre do ano que vem. Depois, ele quer seguir para o doutorado, na mesma linha de pesquisa.
Apesar dos percalços que enfrenta por causa da atrofia medular, Odair — filho de um pai que trabalhou a vida toda em uma empresa de dedetização e hoje está aposentado, e de uma mãe dona casa — diz que a maior dificuldade para pessoas como ele é sempre dinheiro.
"Cadeira de rodas, adaptações posturais, tecnologia assistiva (dispositivos que proveem assistência para pessoas com deficiência), carro adaptado, todos esses itens, necessários para uma vida mais digna para deficientes e familiares, são extremamente caros", diz.
"Se o deficiente e a família não forem paupérrimos, não recebem ajuda alguma dos órgãos públicos. Tudo é caro para quem precisa. Eu ainda tenho sorte de conseguir adquirir bens para facilitar minha vida, como cadeira de rodas motorizada e carro adaptado, que minha mãe dirige."
Ele diz que já viu e vê cadeirantes em carrinhos de bebê e carrinhos de mercado, além de cegos sem acompanhantes.
"É cada absurdo que dá raiva e vergonha de ser brasileiro", reclama.
"Isso tudo é o que eu vejo trabalhando nos hospitais públicos e também sendo atendido. Às vezes eu me canso, mas me faz bem trabalhar no hospital. Poder ajudar um paciente, conversar, mostrar que você realmente se importa com aquela pessoa, é muito bom. Quando um cadeirante vê você ali, fazendo o que gosta, acho que eles sentem um pouquinho de esperança. Que nem tudo é impossível. É difícil? Com certeza. Temos que ter coragem e confiança em nós mesmos."
Por isso, ele diz que espera que um dia todos possam ter uma vida digna.
"Que um cadeirante tenha uma cadeira adaptada; um cego, um acompanhante e livros em braile; um amputado, uma prótese; um surdo-mudo, pessoas que saibam libras; o que precisarem, enfim, para viver melhor", deseja Odair.
"Sempre que troco de cadeira, doo a anterior. Isso é insignificante se pensarmos na quantidade de pessoas que precisam, mas para nós é importante a ajuda mútua. Se eu tenho uma cadeira sobrando, dou a quem precisa; se eu preciso de sonda urinária e outra pessoa tem sobrando, ela me dá. Essa é a ideia que quero passar. Até termos condições melhores nas políticas assistenciais. No meu caso, me considero afortunado. Tanto pela minha família quanto pelas oportunidades que tenho."
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