Opinião

De volta à velha polêmica sobre a cientificidade da psicanálise

Nas últimas semanas, muito se discutiu sobre a cientificidade da psicanálise, em debate iniciado pela publicação do livro "Que bobagem!", de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, no qual a psicanálise é incluída em uma lista de pseudociências. Nossa intenção não é rebater os autores e suas imprecisões (já apresentadas por outras pessoas), mas colocar o problema em um campo mais amplo e complexo, cujo aprofundamento pode ser encontrado no belíssimo livro de Bento Prado Jr, Hegel e Lacan: "Cinco Conferências em Filosofia da Psicanálise", organizado por Richard Simanke e publicado recentemente pela editora Zagodoni.

A questão da cientificidade da psicanálise já era posta desde antes do nascimento desta disciplina.

Sigmund Freud, neurologista de formação, tinha pleno conhecimento da ciência de sua época. Ele frequentou os maiores laboratórios e alguns de seus escritos do século 19 sobre paralisia cerebral —termo cunhado por ele— e afasia foram referência até meados da década de 1950. Era, definitivamente, um pesquisador de altíssimo nível.

Entre 1884 e 1886, obteve uma bolsa para realizar pesquisa em um laboratório de patologia em Paris. No entanto, as deficientes instalações do local fizeram com que sua pesquisa se concentrasse nos trabalhos de Charcot sobre histeria.

Ao contrário das paralisias permanentes, causadas por destruição do tecido nervoso, a paralisia histérica tinha a peculiaridade de ser passageira, dinâmica e cancelável.

Freud observou nas demonstrações do médico francês que podia, por comando de voz, cancelar ou provocar paralisias em um paciente colocado em hipnose.

Como uma ordem dada verbalmente seria suficiente para cancelar ou produzir efeitos no corpo? Que poder a palavra teria sobre a anatomia? Qual a base material orgânica dessas produções?

As investigações anatômicas, munidas de todo o aparato científico da época, não puderam apresentar respostas satisfatórias para essas questões. Os sintomas histéricos foram então classificados como fingimentos. O tratamento se limitava a eletroterapias, banhos terapêuticos, temporadas em estações de águas, e após uma breve melhora os sintomas voltavam com toda a força.

Freud direcionou suas investigações para o campo em que a ciência de sua época falhou e para os pacientes que ela desacreditava.
A impossibilidade de encontrar uma causa diretamente física exigiu novo método de investigação e tratamento: pela palavra. Não sem os mais decididos protestos.

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Formou-se um espaço negativo em torno de sua pessoa: foi impedido de frequentar seus antigos laboratórios, afastado de sua atividade docente, perdeu muitos amigos; mas não recuou.

"A Interpretação dos Sonhos", de 1900, expõe de modo inaugural e inovador as bases teóricas e práticas de sua ciência psicológica, fundamentalmente interpretativa.

Nessa obra, vemos Freud construir, de maneira muito cuidadosa, sua hipótese de que corpo e psiquismo não estão dissociados; que há um caminho de mão dupla entre ambos, de tal modo que não apenas o que é sentido pelo corpo se representa psiquicamente, mas que uma ideia aliada a um forte desejo pode produzir sintomas, a exemplo das paralisias histéricas, cuja causa não é encontrada no corpo, mas apenas o efeito.

A associação entre ideias e desejos não depende, contudo, da vontade consciente do paciente, mas de uma força interna e inconsciente que age sobre o sujeito, sobre seus atos, julgamentos e palavras. Em psicanálise, trata-se de entender a complexidade do humano, não reduzido à mera mecanicidade do corpo ou à razão.

Freud não recusou as ciências de sua época; afirma, porém, os seus limites e a necessidade de repensar antigos problemas a partir de novas possibilidades de investigação

Essa afirmação, junto com o que expusemos acima, toca uma questão maior e de fundamental importância: as demais ciências humanas, que tomam a hermenêutica como método privilegiado e que põem como questão o fundamento subjetivo de todo conhecimento, não estariam, aos olhos das ciências ditas "duras", relegadas à mera perfumaria, sem qualquer valor objetivo?

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Essa desvalorização, por sua vez, cai em um prejuízo para todo o saber científico, pois não há saber isolado, que subsista por si, sem relação com outros saberes e com o próprio sujeito que os cria a partir da interpretação do mundo e de si.

Ana Carolina Soliva Soria é docente do Departamento de Filosofia da UFSCar, bolsista do CNPq e autoras de diversos artigos sobre psicanálise.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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