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Cristiane Segatto

Dominó do bem: como Bianca doou o fígado para o filho e ele salvou uma bebê

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do VivaBem

11/11/2020 04h00

Só quem conhece os 2 anos e 9 meses da história de Joaquim Salviano é capaz de entender o valor de cada uma de suas conquistas. Nos últimos tempos, ele anda cheio de independências.

Bagunça no banho, coloca shampoo na cabeça, junta letrinhas e sabe o que responder quando alguém pergunta sobre a cicatriz na barriga: "trans-plan-te...de...fí-ga-do" diz ele, com um sorriso de derreter corações.

Para a família de Natal, no Rio Grande do Norte, o maior dos acontecimentos é ver o filho comer como qualquer criança saudável. Banana, maçã, manga, tangerina, uva...Joaquim adora frutas.

Gosta, ainda mais, das fontes de proteína (peixe, carne, frango, feijão) que jamais poderia ingerir se não tivesse sido submetido a um transplante de fígado aos 6 meses de idade.

Joaquim Salviano com pais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

O procedimento interrompeu os danos causados pela leucinose, doença hereditária de difícil controle, que pode provocar convulsões, parada respiratória e morte. A mãe de Joaquim, Bianca Damásio Salviano, 32 anos, doou parte do fígado ao filho.

No mesmo dia, o órgão dele, em perfeito estado estrutural, foi transplantado em uma bebê de 9 meses que sofria de atresia das vias biliares (obstrução progressiva dos ductos biliares). Ela está bem e mora no Maranhão.

Assim funciona o chamado "transplante dominó", uma corrente do bem que gera encontros improváveis e vida nova aos pacientes. "Foi uma felicidade imensa", diz Bianca. "Joaquim é um guerreiro que sofreu muito nos primeiros meses da doença, mas ajudou a salvar outra criança".

Leucinose: que doença é essa?

Cinco dias após o nascimento, Joaquim começou a ter engasgos, choro estridente, letargia e sonolência. Com uma semana de vida, a pediatra notou a frequência cardíaca alterada. Foi preciso interná-lo na UTI.

"Ele estava praticamente desfalecido. Não conseguia mamar, nem esboçava reação", diz Bianca. O teste do pezinho ampliado revelou a leucinose, um erro inato do metabolismo.

Essa disfunção também é conhecida com doença da urina de xarope de bordo (DXB). Joaquim não produz uma enzima responsável por metabolizar três aminoácidos: leucina, isoleucina e valina.

O acúmulo desses aminoácidos neurotóxicos pode provocar convulsões, para respiratória e morte. As crianças que nascem com esse problema são submetidas a dietas restritivas e precisam ser alimentadas com fórmulas especiais. Cada lata custa cerca de R$ 1700. Ainda assim, os danos neurológicos podem ser graves. Era preciso encontrar outra solução.

Transplante dominó

Bianca é estudante de Nutrição. Fellipe Macena Salviano, pai de Joaquim, é cirurgião. Estudioso, o casal passou a "devorar" artigos científicos em busca de respostas sobre a doença do filho. Não demorou até descobrirem o pesquisador Kevin Strauss, nos Estados Unidos, um dos mais experientes investigadores da leucinose. "Ele nos disse que a doença é um furacão e aconselhou o transplante", diz Bianca.

Aos três meses de idade, Joaquim já estava sendo atendido pela filantropia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. A instituição foi a primeira da América Latina a realizar transplante de fígado intervivos. Atualmente é a única no Brasil a fazer "transplante dominó" de fígado pediátrico para crianças portadoras de leucinose.

"O fígado de uma criança com leucinose pode ser transplantado em outro paciente sem a doença. Ou seja: a criança recebe um fígado novo e doa o seu para quem tem outro problema hepático", diz o cirurgião Paulo Chapchap, diretor geral do Hospital Sírio-Libanês e coordenador da área de transplantes da instituição.

Joaquim Salviano com ao nascer - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Como isso é possível?

A enzima ausente nas crianças com leucinose é produzida em diversos tecidos (músculos, rins, fígado, cérebro etc). O fígado produz 15% da quantidade necessária para a sobrevivência. Parece pouco, mas um órgão capaz de fabricar essa substância oferece a chance de uma vida longa e saudável ao receptor. Ele passa a viver sem restrição alimentar e sem as crises metabólicas recorrentes que comprometem o funcionamento do cérebro.

"O fígado da criança com leucinose não produz a enzima em questão, mas a estrutura dele é normal", afirma o médico João Seda Neto, cirurgião do grupo de transplantes do Hospital Sírio-Libanês e do Hospital Municipal Menino Jesus. "Por isso, ele pode ser aproveitado por uma criança que tem doença hepática, mas não tem leucinose. Afinal, essa criança produz a enzima em outros sítios do corpo".

No Sírio-Libanês, 20 crianças com leucinose receberam um fígado novo. "Nenhuma apresentou crise metabólica no pós-transplante", diz Seda Neto. "Joaquim é um dos pacientes transplantados mais precocemente (aos 6 meses de idade). Vive sem restrição e não apresenta qualquer déficit neurológico". Segundo o médico, a sobrevida esperada em casos como esse ultrapassa 95% um ano após o procedimento.

Joaquim e a menina que recebeu o fígado dele foram atendidos pela Escola de Transplantes da instituição, um projeto realizado com recursos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS).

Como contrapartida de isenção fiscal concedida pelo Ministério da Saúde, cinco hospitais filantrópicos considerados de excelência desenvolvem projetos de melhoria das condições de saúde da população.

Tudo conspirou a favor

Observadora atenta da evolução do filho, Bianca comemora. "Joaquim é o inverso de tudo o que a leucinose costuma provocar nas crianças", diz. "Até agora seu desenvolvimento cognitivo e motor está excelente".

Além de doar parte do fígado ao filho, Bianca interrompeu a faculdade (já retomada) para estar com ele em tempo integral. Procura estimulá-lo de várias formas. Evita telas, oferece brincadeiras e percebe que ele já se interessa por letras e livros. "Felizmente, houve diagnóstico rápido e a cirurgia não demorou. Tudo conspirou a nosso favor", diz ela.

Não há transplantes de fígado no Rio Grande do Norte. Os órgãos doados pelas famílias de pessoas que sofrem morte encefálica seguem para outros estados. O cirurgião Fellipe Salviano, pai de Joaquim, é concursado da Secretaria Estadual de Saúde e participa da captação. Cabe a ele extrair o fígado do doador quando a família autoriza o transplante que pode salvar alguém.

Quando é uma criança, Fellipe volta para casa com a missão cumprida e divide o sentimento com a mulher:

"Bianca, eu só pensava no Joaquim".

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