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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A feira como um lugar (ainda) democrático para encontro com pessoas idosas

Idosa em feira livre na região de Osasco, na Grande São Paulo - Aloisio Mauricio/Fotoarena/Folhapress
Idosa em feira livre na região de Osasco, na Grande São Paulo Imagem: Aloisio Mauricio/Fotoarena/Folhapress

Colunista do UOL

15/11/2021 04h00

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Da vida sei que gosto da diversidade de locais e dos encontros que ela me proporciona. São pessoas das mais diversas origens, crenças, valores, estaturas, corpos, sorrisos e tristezas que encontro e, muitas dessas, que passo a ter algum tipo de vínculo.

E de estar na rua acompanhando as cenas das nossas vidas, vou aprimorando meu olhar observador, quase investigativo, mas que é sonhador e tenta não ser fofoqueiro ou crítico da vida alheia. Entendi que para culpabilizar alguém ou algo por algum fato, são necessárias muitas provas, argumentos e testemunhas. Ocorre que nem sempre estou com essa disposição.

Por isso analiso corpos em movimento, seja na sua mobilidade, seja no seu contato com outras pessoas ou animais, seja no movimento coordenado de suas cordas vocais durante conversas, seja comigo, com quem está perto de mim ou não. E sem deixar de ressaltar a comunicação e a expressão de corpos nas artes e que estão expostas nas ruas das mais diversas formas. Isso faz da vida algo mais compreensível e menos pesado para se entender.

Daí que gosto de ir à feira, que ainda é um lugar democrático. Não vou entrar na questão dos preços e dizer que, nessa última semana, cheguei a ver um abacate por R$ 8 reais e que há frutas que tenho medo de perguntar o valor da dúzia ou do quilo, literalmente.

Mas o fato é que a feira é um desses espaços ocupados por pessoas idosas que, desde a manhã, já estão ali, vendendo ou comprando. E é muito interessante observar as relações construídas entre idosas e idosos com feirantes.

Há desde pactos eternos de lealdade, isto é, não há outra barraca onde se irá comprar batata, cebola e alho ou morango, abacaxi, melancia, mexerica e laranja. Feirante e a pessoa idosa já sabem que o relacionamento e obtenção de tais alimentos sempre ocorrerá ali, faça chuva, faça sol. E para sempre será assim.

A geração de filhos e netas tentarão até mostrar que na barraca mais à frente o preço ou a qualidade são melhores, mas velhos e velhas têm um acordo verbal e jamais deixarão de comprar ali.

Para quem vende, desde a manhã, enquanto ainda se conclui a montagem da barraca, a quantidade comprada regularmente pela idosa ou idoso já fica separada. São as melhores unidades. E isso é uma forma de cultivar o vínculo. A eternidade é, muitas vezes, interrompida quando no dia combinado para o encontro, idoso ou idosa se ausenta. Tensão total. O feirante tenta fazer seu marketing: "Olha o mamão, que delícia! Ei, eu quero ir embora, qualquer bacia é um real!"

Mas não dá certo. A cabeça dele está preocupada com a ausência da sua cliente leal! Ele pergunta para quem a conhece e ninguém sabe. Até que uma pessoa comenta:

- Pois é, semana passada, saindo daqui ela tropeçou e caiu. Foi laranja, batata, uva, cebola e alho para todo lado! Teve gente que ajudou e teve gente que fez ali a sua feira, acredita? Ela relutou em ir ao hospital, mas acabou indo. Não bateu forte a cabeça, mas não consegue andar faz uma semana hoje.

A feira também é um local onde muitas relações podem ser construídas e mantidas, operando como uma forma de rede de proteção e de troca de afetos e manutenção do comércio local. Há muitas e muitos feirantes que "erram na contagem das dúzias ou do quilo" a depender da condição social da pessoa idosa que faz a compra.

Eles sabem quantas bocas existem na moradia, que muitas vezes é um barraco ou uma casa dentro de um cortiço e que ali a dúzia de fruta tem que render as 20 e tantas bocas de crianças que aguardam ansiosamente pela volta do avô ou da avó, trazendo salsinha, cebolinha e uma fruta adocicada para vidas tão duras desde a infância.

Mas muitas feiras espalhadas pelo Brasil afora são repletas de obstáculos que podem levar pessoas idosas a sofrerem acidentes, desde os mais leves até outros mais graves e traumáticos. Ruas asfaltadas ou não, sarjetas presentes ou não, carrinhos de feira ou de criança, cachorros grande e pequenos, gente sem pressa e outras quase correndo, gente atrás ou gente querendo a sua frente, pés descalços, com chinelo ou tênis.

A todos esses fatores a pessoa idosa está submetida nessa atividade que, ainda que prazerosa e necessária para muita gente, acaba tendo graus de dificuldade a considerar a condição física, emocional, quantidade de sacolas, estado do carrinho e companhia que está junto a essa pessoa mais velha.

Quem vai à feira já teve colisão com carrinhos, ombros ou empurrões de pessoas mais velhas. E tudo bem. A feira, como disse lá em cima, tem que ser um espaço democrático, certo? Nem sempre aquele empurrão que se recebe de uma pessoa idosa é proposital. Pode ser um cuidado para que corpos, que algumas vezes já possuem um retardo na resposta motora, possam não ir ao chão ou baterem nas estruturas das barracas.

Daí que o andar cauteloso de muitas e muitos idosos pode nos confundir em saber se há algum problema físico no andar, se é a busca por uma barraca a quem se quer dar lealdade, ou se é a necessidade de operar um milagre para comprar tudo com 20 reais ou um pouco menos.

As mãos cautelosas, algumas já com sinais de artrite, escolhem os alimentos, enquanto a mente, já na cozinha, constrói cardápios considerando as quantidades ou vontades de netos e netas. Sim, muitas avós são "as melhores cozinheiras do mundo na opinião de netas e netos!"

E, do começo do dia para o final da manhã, o cenário muda e, idosas e idosos com muita ou pouca mobilidade começam a procurar qualquer alimento que não é mais vendido nas barracas. Estão ali no chão e, se houver demora na seleção da alface, da rúcula, da beterraba, do milho, da maçã ou do pimentão, logo chegarão mais pessoas, algumas mais jovens e outras ainda crianças, e alguns cachorros ou pássaros para dividir a sobra.

Sim, a cena e os sentimentos de final da feira não são bons de se ver. Paradoxalmente, em muitos municípios de São Paulo, pode-se assistir essa competição de pessoas idosas pobres procurando alimentos em estado mínimo para consumo, enquanto se saboreia um pastel e um copo de caldo de cana com limão.

Contrastes que refletem em muito a vida cotidiana e que não mudará nos próximos meses, com certeza. Pessoas idosas estarão cada vez mais expostas à insegurança alimentar e, consequentemente, com maior risco para o sobrepeso ou desnutrição, porque poderão não ter acesso ao alimento mais saudável e adequado à sua condição de saúde. Corpos envelhecidos poderão estar mais inflamados, mais doloridos e com menos mobilidade para abaixar, para curvar ou para andar.

Mais recentemente, observo outras pessoas idosas que começaram a vender ovos, limão, alho e temperos nos extremos da feira. São itens mais leves para se carregar. Nessas barracas, ou nos porta-malas de carros antigos, nem sempre o preço é o melhor, mas ali se observa pessoas que, por razões diversas, retornaram ao comércio.

É a necessidade pura de complementar a renda mensal, é para ajudar na renda familiar, já que filhos e netas estão há muito tempo sem trabalhar. É a falta de outra opção de atividade social para estar fora de casa, e não podemos deixar de culpabilizar, agora sim, a ausência de outras atividades sociais e ocupacionais capazes de serem ofertadas pela União, estado ou municípios.

Precisamos redobrar nossa atenção! A ausência de pessoas velhas na feira, enquanto um dos espaços públicos mais democráticos, será um dos maiores fracassos da nossa sociedade e que reduzirá as oportunidades para a realização de atividades sociais e possibilidade de novos encontros. Será um prenúncio de que dias piores virão, sem dúvida alguma.