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Mulheres do Porta dos Fundos: 'Somos sempre tachadas de menos engraçadas'

Macla Tenório, Noemia Oliveira e Evelyn Castro, humoristas do Porta dos Fundos - Divulgação
Macla Tenório, Noemia Oliveira e Evelyn Castro, humoristas do Porta dos Fundos Imagem: Divulgação

Mariana Toledo

Colaboração para Universa, em São Paulo

15/08/2022 04h00

Há 10 anos, surgia no YouTube um despretensioso canal de esquetes de humor que, mais tarde, viria a se tornar uma das maiores referências da comédia nacional. Em 2022, o Porta dos Fundos, dos sócios Antonio Tabet, Fábio Porchat, Gregório Duvivier, Ian SBF e João Vicente de Castro, está completando uma década de história com uma trajetória marcada por prêmios, recordes, bons resultados, polêmicas e crescimento. Hoje, eles são uma produtora consolidada que desenvolve conteúdos e formatos alinhados com os novos hábitos da audiência, como séries, reality show, filmes, podcasts e peças de teatro, entre outros —e que conta com mais de 37 milhões de fãs e mais de 11 bilhões de visualizações nos seus multicanais.

Se o grupo começou como um projeto de homens brancos e héteros da região Sudeste do país, o cenário atual, felizmente, é um pouco diferente. Entre os nomes do elenco fixo estão mulheres, LGBTs, nordestinos e negros. "O Porta mudou em 10 anos e segue mudando muito. São homens que estão a fim de aprender e se desconstruir, e isso tem sido o mais importante. A gente precisa que eles queiram, não adianta só nós fazermos a nossa parte. É muito legal estar lá. É um lugar em que eu tenho uma grande oportunidade de trabalhar o humor como uma forma de serviço, de indagação, dando essa cutucada nas pessoas. Em que eu consigo, enquanto mulher, estar no mesmo patamar dos caras. A gente conversa muito sobre isso. Sobre como as mulheres podem e devem fazer muito mais coisas. A gente já tem espaço, mas ainda podemos ter mais", diz Evelyn Castro, no Porta desde 2017, em um papo exclusivo com Universa.

Para Noemia Oliveira, integrante do grupo desde 2019, a palavra é desenvolvimento. "Estamos caminhando para novas conquistas e, no Porta, eu me identifico nessa parte de desenvolvimento, quer dizer, entendemos alguma coisa, aprendemos que precisamos ter pessoas que representem o país diverso que somos. Quando eu entrei, foi algo muito celebrado, porque o grupo já existia há bastante tempo e não tinha nenhuma atriz preta retinta", lembra.

Exceção na comédia brasileira

Ainda que as mulheres do Porta dos Fundos estejam em um lugar de destaque no cenário da comédia brasileira, elas sabem que são exceção. E que os desafios para a mulher que quer fazer humor —inclusive para elas mesmas— ainda são inúmeros.

"A gente olha para o cenário do humor e entende quem tem a licença de ser engraçado. É algo de fácil constatação. Pra gente é mais difícil, é muito rápido pra alguém falar 'ah, mas ela não é tão engraçada assim'. Tem um caminho árduo pela frente. Quais são os papéis que as mulheres interpretam? De quais temas aceitam que a gente fale? Os caras estão aí, falando do pênis deles há um tempão, agora vai a gente falar da nossa vagina?", questiona Noemia.

Noemia Oliveira faz parte do Porta desde 2019 - divulgação - divulgação
Noemia Oliveira faz parte do Porta desde 2019
Imagem: divulgação

"E ainda é impossível pra mim, como mulher preta, não fazer um recorte racial", ela continua. "Eu vejo que o Porta tem esse cuidado. Você não vai me ver fazendo o papel da empregada, por exemplo. Mas o que sobra pra eu fazer? Quais imaginários que eu, como atriz preta, posso habitar? Quais escalações me restam? Acho que é um grande desafio para nós. Tem muitas mulheres talentosas, até mais do que muitos caras que são famosos, mas que simplesmente por serem homens têm esse espaço."

'Mulher engraçada ou é a amiga dos caras ou é a doida'

Macla Tenório entrou no Porta em 2021  - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Macla Tenório entrou no Porta em 2021
Imagem: arquivo pessoal

Macla Tenório é natural de Alagoas e entrou no Porta em 2021, por meio do reality show "Futuro Ex-Porta", que selecionou entre mais de 10 mil inscritos um novo integrante para o grupo. Ela reflete: "Desde que somos crianças aprendemos que a mulher engraçada vai para dois lugares: ou ela é a amiga dos caras, que fala de tudo, ou ela é louquinha, a doida. Com os homens, não. O cara que é engraçado desde criança é absolutamente incentivado a ser assim. É aquele cara desenrolado, que tem a manha, tem carisma. O homem ganha muito quando é engraçado, enquanto a mulher é mais podada, vista com maus olhos. Falam 'você está a mais. Tenta ser menos'."

Ela se lembra de ter passado por isso em vários ambientes. "Esse já é um grande empecilho para nós desenvolvermos nosso lado engraçado. Existe uma tolerância menor para a mulher fazendo comédia —inclusive do próprio público, que vai mais aberto assistir ao trabalho de um homem do que o de uma mulher, por exemplo."

Assim como Noemia, Macla também faz um outro recorte: "Eu venho do Nordeste e nunca precisei justificar meu sotaque. Eu nunca precisei explicar por que em falo assim, mesmo contracenando com vários cariocas. Eu não preciso ser a personagem nordestina. Nunca foi uma questão. E isso é extremamente positivo".

Quais seriam os caminhos para mudar?

porta - Reprodução Instagram / @andrearocha.fotografa - Reprodução Instagram / @andrearocha.fotografa
A atriz Evelyn Castro
Imagem: Reprodução Instagram / @andrearocha.fotografa

"A gente precisa de mais espaços. É um trabalho em conjunto, todo mundo tem que estar disposto a se colocar nessa posição de 'não sei nada sobre isso e estou disposto a aprender e entender'. E nós, mulheres, temos que continuar fazendo, fazendo e fazendo. Se jogando mesmo", aponta Evelyn.

"É mexer na estrutura, e aí eu penso que oportunidade é a palavra. Muitas vezes a gente vê um filme e se questiona por que aquele protagonista não é uma mulher", completa Noemia. "É quebrar esse pré-conceito de que os homens são muito engraçados e que aquele papel do malandro tem que ser do homem. A gente também sabe fazer, só precisamos de oportunidade para mostrar."

Para Noemia, tem muita coisa que as pessoas falam que fica mais engraçada com um homem fazendo porque estamos estruturalmente vendo há muitos anos só homens habitando esses lugares. "Vai demorar para admitirmos nossos preconceitos. Estamos caminhando. Um ótimo movimento é a gente ir ocupando esses espaços. As portas precisam ser abertas para que as mulheres de fato possam mostrar o que sabem fazer. E a gente sabe fazer coisa pra caramba!"

Mulheres no roteiro e na direção

Macla levanta outro ponto: "O espaço tem a ver com a gente que está fazendo humor na frente das câmeras e botando a cara nisso, mas é uma questão interna também. O Porta, por exemplo, tem muitas mulheres no roteiro e na direção, e isso é extremamente necessário. Ter mulheres entre a galera que escreve, que produz. Se você construir um ambiente majoritariamente masculino vai ser muito difícil que ele se abra para outras mulheres. Tem que começar internamente".

A equipe feminina do Porta, de fato, hoje é expressiva. Entre os nomes "de bastidores", estão Ana Paula Wehba, diretora de negócios; Bianca Goulart, gerente comercial; Fabíola Goellner, gerente de estratégia; Carolina Frajdenrajch, head of talent and experience; Fernanda Chasim, produtora executiva; Bianca Frossard, diretora; e as roteiristas Manuela Cantuária e Gabriela Niskier.

"Ter mais mulheres no grupo também se reflete na troca com a audiência", pontua Noemia. "À medida que vamos entendendo que precisamos tornar essa equipe mais diversa, o público percebe, comenta. Essa frente feminina trouxe muita contribuição para o Porta. Hoje, temos esquetes sobre temas femininos, podemos falar de menstruação, de maternidade. Antes, como iríamos falar disso com propriedade? Sem mulheres escrevendo, dirigindo, atuando, seria impossível. E a liberdade de falar sobre isso também tem que ser celebrada. Podemos falar sobre as nossas coisas. É claro que isso aumenta nosso alcance", completa.

'Questões sociais se refletem diretamente no nosso trabalho'

Noemia está grávida de um menino e começou a questionar como certos comportamentos e atitudes são impostos de forma diferente para meninos e meninas desde cedo. "Ultimamente, estamos vendo roupinhas de bebê para comprar. As opções para meninas são lindas, delicadas. Já para os meninos, são engraçadas e divertidas. Para ele, tem macacão de leão, roupa de dragão. Para ela, só babados, rendas, vestido. Ou seja: o menino desde bebê tem licença para ser engraçado, enquanto a menina tem que ser primeiramente bonita. Mesmo que não esteja confortável. É bizarro."

Fomos ensinadas desde pequenas a 'sentar direitinho', 'se comportar', 'ficar quietinha'. Isso nos prejudicou demais, ferrou com a cabeça de gerações. Eu espero que isso comece a mudar. Precisamos abrir discussões sobre isso.

Evelyn Castro, humorista

Macla traz o exemplo das sitcoms, que reforçam esses estereótipos. "Em 'Friends', por exemplo, o cara engraçado é pegador. Já a mulher engraçada é a doidinha da turma. Está em todos os lugares, em todos os produtos."

Justamente por causa de toda essa construção que parece agir contra o trabalho da mulher no humor, as meninas do Porta sentem uma grande responsabilidade de inspirar e incentivar aquelas que querem seguir pelo mesmo caminho.

"Inspirar meninas e mulheres a persistirem é uma responsabilidade enorme, claro, mas é algo que dá muito orgulho também. Porque o mundo é cruel com a gente, em qualquer hora e em qualquer lugar. Então se o nosso trabalho, a nossa conquista está inspirando mulheres a não desistirem —porque o patriarcado faz tanto esforço para que a gente desista—, que bom que estamos aqui influenciando mulheres a persistirem nos seus sonhos", celebra Noemia.

Nesse sentido, elas refletem sobre os sonhos profissionais e pessoais que carregam.

Evelyn, por exemplo, quer viajar o país —e quem sabe o mundo— com seu primeiro show solo.

Já Noemia lista diversos objetivos, como fazer novela, mais filmes para o cinema, mais esquetes para o Porta. "Além disso, sonho em não ser a única preta nos espaços. Quero ter iguais sempre comigo. Quero que as meninas mais novas não sejam só 'as atrizes pretas'. Que elas possam habitar lugares que eu ainda estou batalhando para habitar. Que esses pequenos movimentos que estamos realizando se estabeleçam e que eu não precise mais racializar minhas respostas. Que eu seja uma atriz que possa estar nos lugares que meu talento diz que eu posso estar", deseja.

"Hoje em dia, ainda se depende muito de sorte. É o raio que tem que cair no lugar certo. Então meu sonho é que não seja mais assim. Quero ver mais igualdade, mais espaços se abrindo. Sonho muito com um lugar mais igualitário e com um mundo mais esperançoso e menos cruel com as mulheres", conclui Macla.