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Em batalhas de rap, mulheres erguem a voz: 'Silenciadas por muito tempo'

Alice Gorete é uma rapper de Maceió. Ela circula pela cena hip hop de diferentes estados - Divulgação/RedBull Francamente/Marcelo Maragni
Alice Gorete é uma rapper de Maceió. Ela circula pela cena hip hop de diferentes estados Imagem: Divulgação/RedBull Francamente/Marcelo Maragni

Nathália Geraldo

De Universa, de São Paulo

05/06/2022 04h00

Faz 16°C numa noite de segunda-feira no Centro de São Paulo. Poliana Hérica cola pela primeira vez na Batalha Dominação, no Metrô São Bento, para declamar sua poesia. Artista travesti, ela é do Ceará e está na cultura hip hop há pelo menos seis anos. Desembarcou na capital paulista duas semanas antes, a convite de organizadoras "Slam das Minas" que, por sua vez, é uma batalha de poesia falada, também parte desse universo cultural.

"O microfone é uma escola e dá possibilidade de cura para mim e para outras pessoas através da palavra", diz Poliana, após ser uma das primeiras participantes do "microfone aberto", ritual em que o público pode ler ou declamar suas rimas antes de o evento, promovido debaixo da estrutura de uma banca de jornal, começar.

Criada em 2016, a Dominação é uma batalha de conhecimento. Isso significa que rimadores e rimadoras improvisam no ringue de palavras sobre os temas sugeridos pela plateia, defendendo um argumento ou uma forma de pensar. Cada um tem 40 segundos para isso. Na noite que Universa acompanhou, rolaram mensagens sobre esperança, cenário político do Brasil e ditados populares.

A base de beats do DJ Tayan, que se identifica como "transviado não binário", acompanhava a voz de mulheres, trans masculinos e pessoas não binárias. Segundo o Instagram do evento, a batalha foi criada para esses grupos. Para definir quem vence, são suscitados palmas e gritos para cada participante. Na dúvida, somos convocados a levantar as mãos. No meio da noite, uma disputa registra 19 braços erguidos a 18.

Uma das organizadoras é a cantora e poeta Nyarai, 26 anos. Ela é um dos rostos do hip hop e denuncia: ainda que a história do movimento seja contra as opressões sociais, há pessoas que fazem parte dele e que ainda as reproduz. Nem sempre se coloca tanta fé nas mulheres como é colocada nos homens, por exemplo.

Nessas condições, a própria cultura dá as regras de como agir: fortaleça os seus. E é o que fazem as MCs, as compositoras e as poetas de diferentes partes do país que seguem rimando para conquistar lugares, falar de seus mundos e provocar revoluções. Conheça algumas a seguir.

"Ganhei R$ 500 numa batalha, minha mãe viu que ia dar certo"

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Uma das fundadoras da Dominação...
Imagem: Georgia Niara/UOL
gabi nyarai  - Georgia Niara/UOL - Georgia Niara/UOL
...no evento, ela organiza as batalhas e abre o microfone para o público
Imagem: Georgia Niara/UOL

Mulheres sempre estiveram presentes em movimentos culturais vistos como periféricos. Mas, para Nyarai, a música rap enclausurou por muito tempo as vozes femininas nos refrões melódicos. Por isso, a poeta cresceu sobretudo ouvindo referências masculinas: Racionais, Facção Central, Trilha Sonora do Gueto. As exceções eram Dina Di, Negra Li, do grupo RZO, e Cris, do grupo SNJ.

"Me incomodava com isso antes mesmo de saber o que era machismo. Mas, de fato, é louco notar que meu repertório musical era masculino. Ao mesmo tempo, quando comecei a participar dos eventos, me perguntavam sempre nos camarins: 'Com quem você está?'. Tinha que explicar que eu iria rimar."

Indo sozinha às batalhas de conhecimento, Nyarai tomou consciência do que merecia sua atenção. Passou a saber mais sobre questões raciais, de gênero e de classe e vencer os oponentes com versos contra opressões. A menina que nasceu no Jardim Luso, na Zona Sul de São Paulo, também começou a levar dinheiro para casa.

"Ganhei R$ 500 na Rinha dos MCs. Foi quando minha mãe entendeu que aquilo daria certo", brinca.

Em 2016, fundou a Dominação ao lado de outros MCs. Ali, reafirma a convicção de que viver de arte é possível. "Batalhas foram o primeiro movimento que me mostrou isso. O impulso e o esmagamento vieram em proporções semelhantes, mas eu sei muito bem fazer isso e foi o que me ajudou a não desistir". Agora, a organizadora também é jurada de batalhas. Diz que a manifestação cultural tem tido mais incentivo financeiro. "Ainda temos que lutar muito, inclusive pela equidade de gênero, mas podemos comemorar nossas vitórias."

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Público da Batalha Dominação, na estação de metrô São Bento, em São Paulo: evento acontece desde 2016, na rua
Imagem: Georgia Niara/UOL

No microfone da "Dominação", elas comandam

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Dahora Nayara é compositora do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo, e vê mais presença de mulheres no hip hop
Imagem: Georgia Niara
sara - Georgia Niara - Georgia Niara
Para Sara, o rap é um instrumento para falar sobre si e lutar contra gordofobia, entre outras opressões
Imagem: Georgia Niara

"Comecei em 2018, na Dominação. Fui desenvolvendo aqui, aprimorando minha técnica. Ainda acho que são poucos espaços para minas, trans, não binários, mas acho que as batalhas ainda são muito dominadas por homens. Pouco a pouco está acontecendo".

Dahora Nayara, 29 anos, cantora e compositora do Grajaú, Zona Sul de São Paulo

"A rima me trouxe a liberdade de falar sobre mim. A partir de 2016, comecei a viver disso e a valorizar meu trabalho. Me juntei ao MC Jupi77er para falar de gordofobia e, de trabalhos como auxiliar de cozinha e de entrega de panfleto, comecei a atuar no hip hop. Damos oficinas de rima, entre outras coisas".

Sara Donato, 31 anos, MC do grupo Rap Plus Size, da Cidade Aracy, São Carlos (interior de São Paulo)

O rap feito por elas está no Brasil inteiro

clara lima - Divulgação/Red Bull Francamente/Marcelo Maragni - Divulgação/Red Bull Francamente/Marcelo Maragni
Clara Lima é de Belo Horizonte e comenta sobre silenciamento das mulheres no cenário hip hop
Imagem: Divulgação/Red Bull Francamente/Marcelo Maragni

A estação São Bento, no centro paulistano, é considerada o "berço do hip hop" no Brasil, por ter se consolidado como ponto de encontro de MCs, b-boys e artistas da cultura urbana nos anos 1980. Mas a música rap se espraiou pelo país.

Clara Lima, por exemplo, tem 22 anos e é de Belo Horizonte. Mergulhou nas batalhas quando passou a acompanhar os duelos de rima pela internet. Ela conta que o rap nem era a primeira opção para fazer arte, porque seus pais tocavam e cantavam na igreja evangélica. Mas, assistindo a vídeos do Duelo de MCs, uma batalha de freestyle que acontece em sua cidade, na adolescência, resolveu mostrar ao mundo as rimas que fazia com o irmão, Cris. Logo o confronto lírico com outros adversários a fez pensar mais sobre questões sociais.

"O movimento ajudou na minha formação, porque ele faz o jovem pensar. Estava conhecendo a rua, com 14 anos, e construindo uma opinião política. O rap fez parte do meu próprio entendimento".

No começo, Clara ficava no cantinho. Mas, decidiu treinar em casa, até que se sentiu segura para participar das regionais da Liga Feminina de MCs, um movimento interestadual em que a presença de mulheres é central.

No ano passado, a cantora lançou o EP "Só sei falar de amor". Depois de explorar diferentes linguagens musicais, ela retomou a origem sendo jurada em batalhas de MCs. "É aquela parada de filha pródiga. Estive também nas batalhas da RedBull e ali tive o sentimento de me reconectar com aquilo e também de ver muitas minas que acompanham meu trabalho dizendo que sou inspiração para elas".

De Maceió, Alice Gorete (foto que abre esta matéria) circula pela cena hip hop de diferentes estados. Aos 22 anos, foi uma das finalistas da batalha nacional RedBull FrancaMente, que aconteceu em São Paulo, em abril.

A trajetória nos duelos de rima começou quando ela tinha 11 anos. "Rimava com um colega na escola, mas só três anos depois é que fui pesquisar batalhas de rima no YouTube. Um dia, gravei um freestyle e uma pessoa publicou um vídeo em resposta. Quando fui para as ruas, vi que a batalha faz com que mulheres se sintam ouvidas e que podemos rimar, sim. E eu, sendo uma mulher LGBT, me expresso para levar a representatividade de quem eu sou."

Para Alice, também importa fazer o público pensar sobre como o machismo não pode ter vez nos duelos líricos.

"O hip hop está aí para quebrar os padrões da parada, mas homens, principalmente os leigos, ainda têm um pensamento preconceituoso. Já ouvi de um cara que só uma mulher estava gritando muito para mim em uma batalha. Respondi: 'Lógico que ela vai gritar assim. Fomos silenciadas por muito tempo'".