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Débora Miranda

O grito engasgado de Carol Solberg e o que aprendemos sobre democracia

Talita e Carol Solberg fazem dupla no vôlei de praia - Divulgação
Talita e Carol Solberg fazem dupla no vôlei de praia Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

27/09/2020 04h00

"Esse grito não foi premeditado, estava no estômago, preso na boca." Foi assim que Carol Solberg, jogadora de vôlei de praia, explicou o "Fora, Bolsonaro!" que a fez virar assunto na última semana.

O protesto aconteceu durante uma entrevista ao canal SporTV no domingo passado, após um jogo em Saquarema, no Rio. Como é possível imaginar, a jogadora não teve mais paz desde então. "Recebi, sim, ataques, e mensagens de apoio de amigos, familiares. Muitos estão preocupados comigo, desde minha integridade física à minha carreira, o que mostra como esse governo promove o ódio entre as pessoas", afirmou em entrevista à Folha de S.Paulo. Ela foi também envolvida em notícias falsas.

Você pode concordar ou não com Carol, ser a favor ou contra Bolsonaro, mas não é essa a discussão que quero propor. O debate que chamou a minha atenção foi sobre uma atleta poder ou não se manifestar politicamente.

A CBV (Confederação Brasileira de Voleibal) divulgou uma nota de repúdio afirmando que tomaria "todas as medidas cabíveis para que fatos como esses, que denigrem [sic] a imagem do esporte, não voltem mais a ser praticados".

Supondo que o posicionamento da confederação não tenha por si só um viés político, por que acreditar que um atleta que se posicionou publicamente possa prejudicar a imagem do esporte?

Vejamos. Recentemente os jogadores da NBA se posicionaram contra a violência policial que atinge negros nos Estados Unidos e, em protesto, decidiram não entrar em quadra para jogar. Decisão bem mais drástica do que o desabafo de Carol. Jogos da NBA tiveram de ser cancelados.

E por mais que essa decisão tenha tumultuado a programação da liga, isso de forma alguma prejudicou a imagem do esporte. Que fique claro: posicionar-se politicamente vai além de ser contra uma figura política; trata-se, muitas vezes, de defender e discutir a garantia de valores essenciais. No caso do basquete, o posicionamento político desses jogadores tratava de valores humanos e da vida.

Eric Reid e Colin Kaepernick (à dir.) protestam durante execução do hino americano em 2016 - Thearon W. Henderson/Getty Images - Thearon W. Henderson/Getty Images
Eric Reid e Colin Kaepernick (à dir.) protestam durante execução do hino americano em 2016
Imagem: Thearon W. Henderson/Getty Images

Colin Kaepernick, jogador de futebol americano, abaixou-se e ficou apoiado em um dos joelhos durante o hino nacional dos Estados Unidos em um jogo de 2016 e se recusou a cantá-lo, após mortes de cidadãos negros pela polícia. Na época, afirmou: "Não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime o povo negro e as pessoas de cor".

Kaepernick teve muitas portas fechadas na NFL —não é possível dizer com certeza se por conta de seu posicionamento político—, mas segue no ativismo. Quando manifestantes ocuparam as ruas de diversas cidades dos Estados Unidos após a morte de George Floyd, ele anunciou que ajudaria a pagar advogados para defender quem fosse preso.

O jogador virou referência e inspirou muitos outros atletas. Durante a Copa do Mundo feminina, a jogadora Megan Rapinoe também se negou a cantar o hino dos Estados Unidos. Ela é conhecida por defender os direitos da população LGBT e por lutar pela equidade entre homens e mulheres no esporte.

Rapinoe também é dura crítica do presidente Donald Trump. Ela já disse que suas ações são "equivalentes a qualquer tipo de desigualdade ou sentimentos ruins que a administração [de Trump] possa ter em relação a pessoas que não pensam igual a ele".

Acredito que a questão principal nesse debate tenha muito a ver com essa disparidade de pensamentos que Rapinoe cita. Nos Estados Unidos, como no Brasil, há uma polarização política que faz com que as pessoas não consigam ouvir quem pensa diferente delas. É o que vem acontecendo por aqui. Foi o que aconteceu com Carol Solberg.

Sócrates comemora título paulista do Corinthians com a camisa da Democracia Corintiana contra o São Paulo em 1983 - Jorge Araújo/Folhapress - Jorge Araújo/Folhapress
Sócrates comemora título paulista do Corinthians com a camisa da Democracia Corintiana contra o São Paulo em 1983
Imagem: Jorge Araújo/Folhapress

Corinthiana que sou, cresci escutando histórias sobre a Democracia Corinthiana, movimento que pregava a liberdade de ação e pensamento dentro do próprio clube e que, naturalmente, contou com atletas que se posicionaram —e se posicionam ainda hoje— politicamente a favor de valores que compartilho e que acredito serem essenciais para um mundo mais justo, livre e pacífico.

Observar esse posicionamento —ao contrário do que pode supor a CBV e tantas outras federações esportivas no mundo que querem calar seus atletas— só me fez admirar mais ainda o time pelo qual eu sempre torci. Fez com que eu enxergasse meus ídolos esportivos não apenas como craques dentro de campo, mas como pessoas que estão atentas a injustiças, que se preocupam com o mundo e querem que ele evolua.

E que fique claro: isso é muito mais importantes do que Bolsonaro ou Trump. O que estou discutindo são valores essenciais para a convivência em uma sociedade que se diz democrática. Querer calar a voz do outro e desejar cercear liberdades não pode ser questão de opinião. Simplesmente é algo que não cabe. Nem legalmente.

Atletas são ídolos e referências para muita gente. Não é só importante que eles tenham liberdade para se posicionar. É essencial e democrático que isso seja garantido a eles, como a todos nós, cidadãos que somos.

E a quem discordar, cabe aprender a ouvir e respeitar. Essa é a maior lição que aprendemos com o desabafo de Carol.