Inovação raiz

Tecnologias criativas e descomplicadas são revolucionárias... e a cara do brasileiro

Alexandre Costa Nascimento Colaboração para Tilt, em Curitiba

O que a calçada, o açaí, a fossa séptica e a bananeira têm em comum? Nada tão engraçado quanto a pergunta sugere. A resposta passa por um ramo da ciência muito criativo, que busca soluções de grande impacto, usando tecnologias descomplicadas e, muitas vezes, inusitadas: a inovação frugal.

Sabe o tanquinho de lavar roupas e o filtro de barro? Aquecedor de água e forno que funcionam com luz solar? Garrafas PET como fonte de iluminação? São exemplos disso. O brasileiro é mestre em arranjar soluções assim, mas o conceito é científico e ganhou visibilidade em 2010 com o artigo "First break all the rules - The charms of frugal innovation" (Primeiro quebre todas as regras - Os encantos da inovação frugal), da revista britânica "The Economist".

A graça está na simplicidade, mas não só. A inovação frugal se desenvolve silenciosamente, à margem dos sofisticados laboratórios e dos multimilionários centros de pesquisa e desenvolvimento, e passa pela capacidade de se equacionar baixo custo e alta eficácia para resolver problemas complexos. Geralmente acontece por dedicação individual e pode estar acompanhada ainda de uma preocupação com o meio ambiente ou uma causa social.

O tema virou objeto de estudos e pesquisas, mas como tudo ainda é muito novo na academia ainda não há um consenso sobre sua definição. Em geral, há uma característica fundamental: surge na base da pirâmide e envolve o uso inovador de materiais simples, quase sempre ignorados ou negligenciados, para incluir pessoas. Isso pode valer para fossas ou carros.

"Isso distingue a inovação frugal de outros tipos de inovação: ela começa a incluir pessoas que não têm uma escolaridade específica, uma formação técnica nem os recursos financeiros e materiais para inovar", explica a doutora em estudos do desenvolvimento pelo Instituto Internacional de Estudos Sociais (IISS), da Universidade Erasmus de Roterdã (Holanda), Ariane Agnes Corraldi. Por exemplo, quando são grandes empresas que fazem a inovação frugal, a questão passa a ser para quem se inova, e não quem inova.

O objetivo é aumentar o mercado para aquele que não tem renda, reforça Luc Quonian, professor livre docente em ciências da informação e da comunicação na Université Aix Marseille III (França).

E favor não confundir com "gambiarra", dizem os especialistas.

A gambiarra ocorre no improviso, "muitas vezes no limite da legalidade e sem observar normas técnicas e de segurança", diz Corraldi —ainda que se trate de uma ciência em que o senso prático e o empirismo podem ser mais valiosos do que o domínio teórico e uma titulação de pós-doutorado. "Já a tecnologia frugal é a manifestação de uma força criativa que inova a partir de soluções simples disponíveis através de um processo social."

Veja abaixo alguns exemplos de inovações "mais raiz e menos Nutella" aqui no Brasil.

Calçada de caroço de açaí

Você é da turma do açaí batido? Capaz de nem imaginar a quantidade de resíduos que essa iguaria deixa para trás. Como só a polpa tem valor comercial, o caroço vira lixo. No Pará, que produz 1,3 milhão de toneladas por ano, isso significa um volume colossal de sobras indo parar em aterros sanitários —ou em qualquer outro lugar, sem cuidado.

Pesquisadores do curso de engenharia da Unama (Universidade da Amazônia), em Belém (PA), tentavam achar uma maneira de resolver esse problema quando chegaram ao concreto permeável. Eles conseguiram incorporar a semente do açaí à massa de cimento para tornar o material mais permeável e barato.

"Buscamos alternativas científicas, mas sempre acabávamos em processos custosos. Voltamos à base e fomos a campo ouvir os batedores de açaí [trabalhadores que beneficiam o produto de forma artesanal] e percebemos que estávamos pesquisando errado", explica o engenheiro civil e mestre em Estrutura e Construção Civil, Mike da Silva Pereira, coordenador do projeto na Unama que envolve mais quatro alunos.

A solução foi usar o caroço in natura. Ao usar o concreto em bloquetes para construir calçadas, a invenção ajuda a drenar a água e evitar alagamentos, em uma região em que a chuva é uma constante. O que antes era lixo tornou-se insumo, capaz de gerar uma economia de até 15% no custo do calçamento.

Os testes de durabilidade e resistência deram bons resultados, e o concreto foi usado em uma casa de comunidade de baixa renda em Belém, onde passou a ser monitorado. "O aspecto é muito bom e agora estamos acompanhando e está compatível com os ensaios de laboratório", explica Pereira.

A próxima etapa é levar o sistema para as indústrias de açaí instaladas em Igarapé-Miri, a 76 km de Belém.

"Quando se criar uma política pública, o caroço, que hoje é um problema, poderá até ser comercializado como subproduto e gerar renda para as comunidades e economia para o poder público", defende.

A cultura do açaí, que gera mais de 150 mil empregos e movimenta US$ 1,5 bilhão na economia do Pará, pode resolver um problema que coloca Belém na última posição dentre as 27 capitais brasileiras na questão da qualidade das calçadas, segundo o estudo "Calçadas do Brasil", do portal Mobilize Brasil.

"Ecobarreira" tenta salvar rio

"O rio foi morrendo aos poucos. Meus dois filhos ouviam as histórias de quando eu era criança, de que eu nadava ali, e me perguntavam por que não podiam nadar também", lembra o vendedor Diego Saldanha. Em vez de responder o óbvio, ele decidiu buscar na internet um jeito de despoluir o Atuba, seu vizinho de infância.

Um trecho do rio, que divide Curitiba (PR) da cidade de Colombo, passar perto de sua casa, na região metropolita da capital paranaense. Por conta própria, ele desenvolveu uma barreira física flutuante para conter o lixo sólido que desce com a correnteza.

Para isso, usou 20 "bombonas" (tambores plásticos com 50 litros cada) interligados por uma rede. Ele amarra o sistema na diagonal, para que o lixo acumule na margem esquerda do rio, onde ele consegue fazer a limpeza periódica.

É o próprio Saldanha quem recolhe manualmente o lixo das margens do Atuba, quando não está trabalhando —ele revende frutas compradas no Ceasa pelas ruas de Colombo.

Ele conta que gastou R$ 1.000 no projeto. Foram duas tentativas antes de chegar ao modelo ideal, mas deu certo. Em três anos, afirma já ter retirado três toneladas de dejetos. Garrafas plásticas e isopor são os itens o que mais encontra, mas a barreira já segurou sofá, geladeira e televisão —ele até montou uma espécie de "Museu do Lixo" num espaço de sua casa para expor as coisas mais curiosas (ou bizarras).

O que não vira peça de museu é encaminhado para reciclagem e vendido, o que gera para ele uma renda de cerca de R$ 200 por mês. O valor é usado para investir em projetos da própria comunidade, diz Saldanha, que tenta obter apoio do poder público.

Da prefeitura de Colombo, ele conseguiu apenas a indiferença: "Instalei a barreira sem pedir autorização. Mandei uma mensagem ao secretário de meio ambiente, mas ficou por isso. A prefeitura não apoia, mas também não atrapalha."

Mas ao menos outras 20 cidades o procuraram e se inspiraram para criar suas próprias barreiras ecológicas. Em Chapecó (SC), a construção da contenção partiu do poder público local.

Bananeira resolve o esgoto

Um surto de diarreia nos períodos de enchente e vazante na comunidade ribeirinha de Santo Antônio do Tracajá (PA), onde vivem 90 famílias, foi o sinal definitivo da urgência. Era preciso resolver a falta de saneamento básico.

Sem rede ou tratamento de esgoto, a água que abastece a vila, nos arredores de Parintins, vem de um poço artesiano, e os dejetos iam para fossas negras e privadas a céu aberto.

Esse tipo de fossa —a forma mais rústica de cavar buracos na terra, sem revestimentos — traz muitos riscos ao local, porque os resíduos caem diretamente no solo e podem se infiltrar na terra, afetando o ambiente.

"Percebemos que o poço corria risco de contaminação", lembra Valter Pereira de Menezes, professor de ciências da escola municipal da vila, que encabeçou um projeto com os alunos do 9º ano do Ensino Médio para achar alternativas viáveis.

A solução veio de uma ONG que projetava fossas sépticas experimentais.

Nesse sistema, caixas de alvenaria são feitas em buracos de 2 metros quadrados por 1,5 metro de profundidade. O esgoto de cada casa é levado à cova por um cano e fica numa câmara central, onde bactérias fazem o trabalho de decomposição dos dejetos. O líquido que sobra escorre por frestas e é filtrado por camadas sobrepostas de caliça (entulho de construção), brita, areia, terra e húmus.

O pulo do gato é plantar, na última camada, bananeiras e taiobas. Essas plantas, que demandam grande quantidade de água, sugam a água acumulada e ajudam a secar a fossa naturalmente.

Cada fossa séptica tem capacidade para atender uma residência com até quatro pessoas e custa aproximadamente R$ 2.000, incluindo material, transporte e mão de obra.

A comunidade de Santo Antônio do Tracajá, com o apoio da ONGs e de doações, conseguiu construir em regime de mutirão 70 fossas sépticas e virou um exemplo para a região, onde 90% da população não tem água tratada, segundo os dados mais recentes do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento).

"Essa tecnologia alternativa é a primeira da Amazônia a tratar os dejetos humanos. É uma solução empírica para a Amazônia onde não chega o saneamento básico", afirma Menezes.

O projeto reduziu em 98% os casos de diarreia na comunidade. "Não substitui o saneamento, mas é uma alternativa que tem eficácia comprovada", afirma Samuel Aquino, pesquisador e especialista em tratamento de água e efluentes.

O sistema é parecido com um modelo de fossa desenvolvido, certificado e patenteado pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que segue as regras técnicas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Mas, para dizer que a banana é comestível, seria preciso um estudo mais aprofundado.

De qualquer forma, Aquino reforça a necessidade de um monitoramento técnico para garantir a eficiência do sistema e certificar que não há contaminação do solo, da água do poço ou do rio.

Curtiu? Veja mais exemplos de inovação frugal

  • Tanquinho de lavar roupas (Brasil)

    Mais simples e barato que uma máquina de lavar roupas, faz o trabalho essencial (bater a roupa suja) e permite o reaproveitamento da água.

  • Cisterna de concreto (Brasil)

    Agricultor e analfabeto, o sergipano Manoel Apolónio deixou Jeremoabo, no sertão, para trabalhar na construção civil em São Paulo. Quando voltou ao estado natal, passou a construir cisternas inspiradas nas piscinas da cidade grande, ao custo de R$ 1.000 e para armazenar 16 mil litros de água. A água da chuva cai no telhado da casa e escoa para a cisterna por calhas. O projeto inspirou um Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC) do governo federal, mas quando trocaram a frugalidade das cisternas de concreto por reservatórios de polietileno, o custo aumentou e elas deformaram com o calor do sertão. As cisternas de concreto também ajudavam empregar mão de obra local e a movimentar o pequeno comércio e fornecedores de materiais de construção.

  • Recuperador de Calor de Chuveiro Elétrico (Brasil)

    Um sistema de serpentinas reaproveita o calor da água do chuveiro elétrico para reduzir a diferença de temperatura e aquecer, o que significa uma economia de até 50% no consumo de energia pelo chuveiro e de 20% a 30% na conta de luz.

  • Geladeira sem eletricidade (Índia)

    Usando cerâmica e um compartimento de evaporação de água, resfria e conserva 5 quilos de alimentos a 8°C. A água deve ser trocada a cada 12 horas para manter o resfriamento. Foi inventada pelo artesão Mansukhbai Prajapati, que veio de uma família de oleiros e conhecia a capacidade da cerâmica pela evaporação.

  • Carro Nano (Índia)

    Criado para ser o carro mais barato do mundo (cerca de US$ 2.500), o modelo Nano levou ao extremo o conceito da tecnologia frugal ao mundo automobilístico. Buscava atender a demanda das classes mais populares na Índia, mas vendeu pouco.

  • Sabão em pó em sachês (África)

    Como vender sabão em pó em um mercado onde metade da população vive abaixo da linha de pobreza, com US$ 2 ao dia ou menos? Os tradicionais pacotes de 1 quilo de sabão em pó são artigo de luxo. A solução foi vender em pequenas doses fracionadas, embaladas em sachês, que custam apenas alguns centavos.

  • Cabras bombeiras (Portugal)

    Portugal sofreu terrivelmente com incêndios florestais. O governo usou então rebanhos de "cabras sapadoras" (a versão lusitana para "cabras bombeiras") para o controle de 20 mil hectares de matas e pastagens, que se mostraram mais eficientes que drones, satélites e aeronaves. Os animais comem a vegetação rasteira, responsável por propagar os incêndios.

  • Impressora 3D caseira (Brasil e Togo)

    No Togo (oeste da África), o geógrafo Afate Gnikou construiu uma impressora 3D a partir de sucata recuperada de um lixão. No Rio de Janeiro, o engenheiro mecânico Lucas Lima, morador do Complexo do Alemão, fez a mesma coisa. A impressora africana, chamada W.afate, custou 4 mil euros, o equipamento não é patenteado e está disponível gratuitamente para quem quiser montar seu próprio equipamento. Já a impressora Made in Favela custou R$ 680 --90% mais barata que um equipamento convencional. O projeto deu origem à startup Infill.

  • Eletrocardiograma portátil (Índia)

    A simplificação tecnológica de um aparelho de eletrocardiograma e a redução para as funcionalidades estritamente essenciais reduziu o peso do aparelho de 6,8 kg para 1,3 kg, tornando-o mais leve e portátil, e o custo de US$ 10 mil para US$ 800 por aparelho. Com isso, o exame por paciente baixou para US$ 1.

Para saber mais

  • Filme: O menino que descobriu o vento

    Baseado em fatos reais, é um retrato fiel do poder de transformação de uma inovação frugal em uma comunidade. Conta a história de William Kamkwamba, um jovem estudante em uma vila no interior do Malauí que, literalmente, moveu moinhos de vento para colocar sua engenhosidade em prática. O filme é honesto ao retratar seu idealismo e sua ?centelha criadora?: onde muitos viam apenas uma bicicleta e sucatas, ele via a esperança de dias melhores e uma forma de contornar a estiagem.

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