Topo

Google leva arte afro para internet, mas diretor de museu critica ação

"Refeição", de Maria Auxiliadora, parte do acervo do Museu Afro Brasil, passa a ser exibida no site Google Arts e Culture - Divulgação/Google
"Refeição", de Maria Auxiliadora, parte do acervo do Museu Afro Brasil, passa a ser exibida no site Google Arts e Culture Imagem: Divulgação/Google

Ruam Oliveira

Colaboração para Tilt, de São Paulo

17/11/2020 04h00

Unindo-se a outras 15 instituições culturais, o Google criou o projeto "Consciências Negras", uma sessão inteiramente dedicada à cultura afro-brasileira em sua plataforma Arts and Culture, que reúne as exposições de mais de 2 mil museus de todo mundo.

Um dos destaques é a criação de quatro obras inéditas feitas em parceria com o Museu Afro Brasil. No entanto, o diretor e fundador da instituição, Emanoel Araújo, disse não haver parceria alguma.

Não foi feito em parceria com o museu coisa nenhuma. Eles foram lá, fotografaram o museu com um grupo de pessoas negras, mas que não tem nada a ver com o museu. Não é uma posição do museu
Emanoel Araújo, diretor do Museu Afro Brasil

Ele questiona ainda se o Google possui alguma inciativa para tirar a população negra da miséria, o real motivo para que o negro permaneça num estereótipo negativo. "Tem 130 anos que a escravidão acabou, o Brasil nunca se importou com as questões relacionadas ao negro. [O negro] Sempre foi visto como um substrato da sociedade." Para desmistificar os estereótipos do negro, diz o diretor, o Google deveria atuar com a sociologia e antropologia e não com a arte.

Questionado sobre as declarações de Araújo, o Google, por meio de sua assessoria de imprensa, se limitou a dizer que o museu ajudou a empresa a selecionar os temas para os artistas. "O historiador Douglas Araújo levantou a pesquisa e se aprofundou nos temas. As obras farão parte da página do Museu Afro no Google Arts and Culture."

Araújo afirma que o espaço do museu "não passou de um palco para que eles fizessem [as ações]". Com dezesseis anos de existência, o Museu Afro Brasil, localizado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, tem acervo com mais de 6 mil obras.

A equipe de comunicação da instituição, por sua vez, sustenta haver parceria com o Google e que, junto do criador [o diretor Emanoel Araújo], "existe uma equipe qualificada e que pensa todas as ações transversais do museu". Devido à pandemia, acrescenta, algumas dessas ações foram divididas entre a equipe.

Consciências Negras importam

De acordo com Rafael Camilo, líder criativo na área de marketing da Google e um dos idealizadores do "Consciências Negras", seria um contrassenso limitar a discussão a apenas uma consciência quando 56% dos brasileiros são pretos e pardos.

jess - Divulgação/Google - Divulgação/Google
"Irmandade da Boa Morte", obra de Jess Vieira, que retrata a Irmandade da Boa Morte, uma comunidade e irmandade que culminou no empreendedorismo feminino
Imagem: Divulgação/Google

Idealizado a partir de agosto, o projeto resgata as representações do negro na arte a partir do aspecto da ancestralidade. A ideia, diz Camilo, é entender o passado como ponte para outros futuros.

A nova sessão também traz um contexto histórico sobre o dia 20 de novembro, quando se comemora o Dia da Consciência Negra, com fotografias, áudios e documentos dos movimentos negros brasileiros.

As memórias sustentam práticas e discursos, que sustentam identidades. Toda identidade tem dois fundamentos: uma é a alteridade, que é eu me diferenciar do outro. Outro fundamento da identidade é a memória, saber quem você é e quem você foi, quem veio antes de você e se legitimar a partir daquele discurso
Douglas Araújo, historiador que atuou no projeto

São 31 exposições, 13 delas inéditas, incluindo 600 obras digitalizadas do acervo do Museu de Arte da Bahia. A sessão reúne artes da Fundação Cândido Portinari, Instituto Moreira Salles, Pinacoteca de São Paulo, Museu da Pessoa, entre outros.

As obras inéditas do Museu Afro Brasil

Quatro artistas foram convidados pela parceria firmada entre o Museu Afro Brasil e a Google para criar obras que retratassem diferentes lados da população negra.

Robinho - Divulgação/Google - Divulgação/Google
"Ibejis", obra de Robinho Santana que mostra entidades de origem iorubá que representam as dualidades humanas
Imagem: Divulgação/Google

Uma delas é a Irmandade Viva, assinada pela artista Jess Vieira, que retrata a Irmandade da Boa Morte, que foi composta por mulheres negras que se uniam não apenas para cultuar os santos como também para se ajudar. Consideradas as primeiras mulheres trabalhadoras livres, as "ganhadeiras" trabalhavam para seu próprio sustento. No caso das escravizadas, entregavam parte ao senhor de escravos.

Eram mulheres extremamente empoderadas, não só politicamente, mas esteticamente. As imagens são de mulheres sempre altivas. Mulheres negras exibindo joias e liberdade política são uma ruptura social que ainda estamos buscando socialmente
Douglas Araújo, historiador

A infância é outro elemento representado. Pelas mãos do artista Robinho Santana, uma obra apresenta os Ibejis, entidades de origem iorubá. São gêmeos que remetem à dualidade humana para demonstrar a perspectiva cíclica da vida, pois as duas crianças são ancestrais que sempre retornaram.

"As crianças representam o passado encarnado e ainda assim são as possibilidades de futuro", conta Araújo.

Os conhecimentos e as habilidades tecnológicas dos povos africanos e explorados pelos colonizadores aparecem na obra de Heloísa Hariadne.

A última das quatro obras inéditas visita a arte dos Irmãos Timótheo, precursores do movimento modernista e que representavam o negro para além do estereótipo de escravizado. Quem assina esta última é o artista Pegge, com a obra intitulada "A insistência em ser visto".

"Eles [os Irmãos Timotheo] romperam com a imagem do negro sem rosto e servil, alienado e escravizado. Pintaram um negro humanizado, rompendo com o racismo porque uma das esferas do racismo é desumanizar o negro", aponta Araújo.