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Lidia Zuin

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Máquina com 'vida': como lidar com IA que já parece ser um pequeno animal?

Relação com animais dá pistas sobre como iremos nos envolver com máquinas com inteligência artificial avançada - Freepik
Relação com animais dá pistas sobre como iremos nos envolver com máquinas com inteligência artificial avançada Imagem: Freepik

Colunista do UOL

04/04/2023 04h00

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Na semana passada, comentei sobre como recentes desenvolvimentos em inteligência artificial (IA) poderiam nos ajudar a ler escaneamentos cerebrais e então "traduzir" o que o paciente estaria vendo no momento do exame. Em última instância, essa mesma tecnologia poderia nos ajudar a entender a maneira como outras espécies também veem o mundo —tanto no sentido literal de enxergar, como também de compreender e se relacionar com o mundo.

Será que essa mesma conquista também nos ajudaria a refletir sobre como nos relacionamos com as próprias IAs?

Nick Bostrom é um dos autores que fazem essa correlação entre ética animal e ética da IA.

No ano passado, ele assinou junto de Carl Shulman o documento "Propositions Concerning Digital Minds and Society", no qual sugere que, no presente momento, já possuímos sistemas de IA que possuem um nível de desenvolvimento sensorial e cognitivo, bem como moral, similar ao de alguns animais pequenos.

Apesar de estarmos tratando de sistemas não biológicos e, portanto, não dotados de vida como a entendemos, ainda assim tal questionamento nos dá a oportunidade de saltar do senso comum do antropocentrismo.

Foi esse mesmo salto que a escritora Donna Haraway deu em sua obra ao migrar do tema do ciborguismo, nos anos 1980, para a pesquisa sobre animais não humanos nas décadas seguintes.

Essa transição ficou mais abertamente esclarecida no livro "When Species Meet", quando entendemos que Haraway sempre esteve preocupada em endereçar o tema do pós-humanismo e, portanto, um deslocamento do ponto de vista antropocêntrico para a observação de outras espécies.

Usar animais domésticos como cães foi um atalho bastante didático, neste caso.

Afinal, é mais fácil conceber como humanizamos ou colocamos animais domésticos em outro patamar existencial se comparados com outros animais selvagens ou então aos animais de cultivo.

A velha problematização vegana que questiona por que amamos alguns animais e comemos outros evidencia também essa distinção que fazemos cultural e moralmente.

Diante da realização de que um bife é, literalmente, um pedaço de um ser vivo, bem como outras explicações que dizem respeito ao impacto ambiental, cada vez mais pessoas têm adotado uma dieta vegetariana e vegana.

  • Nos Estados Unidos, 6% da população se declara vegana, uma proporção seis vezes maior do que o registrado em 2014.
  • Similarmente, cada vez mais pessoas têm participado de movimentos como a "Segunda-feira sem carne" ou o "Veganuary".

Ainda assim, porém, esta é uma proporção bastante pequena quando consideramos o todo.

O que quero dizer com isso é que, mesmo diante de uma imensidão de material que evidencia o sofrimento animal e a emergência de opções alimentares que substituem ou ainda superam a carne como fonte de proteínas, não é suficiente para que todas as pessoas ou uma maioria absoluta decida deixar de consumi-la.

Eu mesma me coloco nesta encruzilhada, já que continuo consumindo alimentos de origem animal, como leite e ovos.

Mas o ponto aqui não é abordar a adoção de uma dieta vegetariana ou vegana, e sim como estas refletem a maneira que vemos outros animais não humanos.

Em "The Ethics of Artificial Intelligence" (2011), Nick Bostrom e Eliezer Yudkowsky abordam justamente essa questão, de que aceitamos o fato de que vários animais possuem senciência (capacidade para experienciar o mundo, por exemplo através da sensação de dor e sofrimento), mas não sapiência (capacidades associadas à inteligência, como ser autoconsciente ou então capaz de responder racionalmente).

Isso já é suficiente para que coloquemos o humano em um patamar moral mais elevado do que um porco ou mesmo um cão, por exemplo, apesar de o enquadramento de animal doméstico do último tornar essa avaliação mais delicada.

Portanto, se já temos hoje sistemas de IA com uma capacidade cognitiva e sensorial similar à de animais pequenos, como defendido por Bostrom, é correto afirmar que há um status moral envolvido nesta conta.

Nas palavras do autor:

Um sistema de IA senciente, mesmo que não possua linguagem ou outras faculdades cognitivas superiores, não é como um animal de pelúcia ou uma boneco de corda; é mais como um animal vivo. É errado infligir dor a um rato, a menos que haja razões morais suficientemente maiores para justificá-lo. O mesmo pode ser dito em relação a um sistema de IA senciente. Se, para além de senciência, o sistema de IA também tenha um tipo de sapiência similar à de um ser humano adulto comum, então ele teria um status moral completo, equivalente ao de seres humanos."

Na arte e na filosofia, movimentos e conceitos como Ontologia Orientada ao Objeto (OOO) propõem, justamente, esse deslocamento para se pensar como seres não humanos ou, ainda, objetos inanimados poderiam ter uma "vida" própria.

Dando um passo além do animismo, vertente religiosa que considera que todas as coisas, mesmo as inanimadas, possuem vida, a ontologia orientada ao objeto estuda também a maneira como humanizamos todas as coisas ao ponto de existir fenômenos como a pareidolia.

Contudo, não seria esta uma tendência que temos justamente por conta da maneira como percebemos o mundo enquanto espécie e não necessariamente apenas porque fomos culturalmente formados para fazê-lo?

Lembro de ter trazido esse questionamento durante uma aula no mestrado anos atrás, porque já foi feito um experimento no qual pesquisadores conseguiram fazer a mesma coisa que abordei na semana passada, mas com um gato.

Ao ler a atividade do córtex visual do gato, que assistia a um trecho de um filme da série "Indiana Jones", foi notada a comparação de como um rosto humano se transforma em um rosto parecido com o de um gato a partir da visão do animal.

Isso corroboraria com a ideia de que gatos nos veem como versões maiores de si mesmos, mas essa é uma teoria que parece ser parcialmente refutada por pesquisadores de comportamento animal.

A depender de outras pesquisas feitas com cães, que mostraram que eles não nos veem como versões maiores, é possível que o mesmo ocorra com gatos, ou então eles simplesmente não se importem ou façam distinção de que somos uma outra espécie.

O contexto com o qual nos relacionamos com o animal, bem como suas experiências prévias, podem ter um peso muito maior do que realmente a classificação enquanto espécie humana ou a decodificação visual, portanto.

O quanto disso poderia ser transportado para o âmbito da relação homem-máquina?

Para Kate Darling, pesquisadora do MIT Media Lab, a maneira como tratamos animais pode dizer muito sobre como tratamos ou trataremos robôs sociais.

Em seu mais recente livro, "The New Breed: What Our History With Animals Reveals About Our Future With Robots", Darling sugere que de um ponto de vista social, legal e ético, a maneira como devemos nos relacionar com IAs deve ser parecida com a maneira como nos relacionamos com animais não humanos.

Levando em conta que amamos alguns e comemos outros, o que isso pode significar, na prática, quando pensamos em IAs?

Em uma entrevista concedida em 2021, Darling argumenta que, baseando-se no nosso histórico com animais não humanos, é possível que, em geral, tenhamos um certo desconforto diante da violência contra alguns tipos de robôs da mesma maneira que algumas pessoas não veem problema em comer asinhas de frango.

Seria possível, então, que o especismo também encontre suas ramificações na robótica?

A julgar pelo desconforto causado em alguns espectadores dos vídeos da Boston Dynamics, em que os pesquisadores chutam os robôs quadrúpedes, pode ser que quanto mais essas máquinas se parecerem com algo que nos é caro (por exemplo, um cão), mais reprovável seja a violência contra elas.

Por outro lado, no caso de um robô que não se pareça com nada vivo ou sequer tenha um modo conversacional semelhante ao humano (seja este por escrito ou por voz, como no caso das assistentes digitais), talvez este não nos desperte tanto afeto e empatia —a julgar pela comparação entre a IA Samantha do filme "Ela" e HAL 9000 em "2001 - Uma Odisseia no Espaço".

Enquanto espécie, somos capazes tanto de ter uma pedra de estimação como somos capazes de matar e torturar animais ou mesmo outros humanos. Mas a capacidade de cometer tais atos é diferente de sua legalidade ou mesmo moralidade.

É neste âmbito que ainda veremos como a regulamentação e a confecção de IAs pode nos pôr em direção a um catalisador de maus comportamentos ou de ajustes nos hábitos que mantemos entre nós.