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Lidia Zuin

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mais TikTok e K-pop, menos Mona Lisa: números agora definem o que é arte

Quadro da Mona Lisa, no Museu do Louvre, em Paris (França), em abril de 2018 - Pedro Fiúza/NurPhoto via Getty Images
Quadro da Mona Lisa, no Museu do Louvre, em Paris (França), em abril de 2018 Imagem: Pedro Fiúza/NurPhoto via Getty Images

Colunista do UOL

16/05/2023 04h00

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Em um artigo publicado no fim de março no site ArtNews, Ben Davis apresenta o conceito de "estética quantitativa", isto é, a definição do gosto popular a partir de métricas e estatística ou como preferências podem ser quantificadas —termo este que, aliás, tem ganhado proeminência no universo da tecnologia, especialmente em conceitos como "quantified self" (o eu quantificado).

Apesar de a ideia de estética quantitativa ser mais profundamente explorada por cientistas que estudam, de fato, o tópico do gosto popular, o que Davis traz em pauta é a forma como definimos o que é boa arte ou um bom artista baseado nos números:

  • A quantidade de streams,
  • O número de likes e seguidores
  • A frequência de aparição pública
  • A presença em playlists
  • O valor das vendas etc.

A última vítima dessa lógica foi a atriz Elle Fanning, que não foi contratada para um grande projeto por não ter seguidores o suficiente em suas redes sociais.

Ainda que esse raciocínio possa parecer frágil quando exposto dessa maneira, ele é bastante comum entre fãs e "stans" de artistas e obras —sejam elas franquias baseadas em quadrinhos, cantores pop, seriados, ou atores.

Se você tem o hábito de usar Twitter, certamente já deve ter visto brigas travadas entre fãs da Anitta e da Ludmilla ou da Taylor Swift e da Ariana Grande usando números como argumento para a superioridade de sua artista preferida.

Só que, independentemente disso, o motivo pelo qual essas e outras artistas fazem tanto sucesso tem menos a ver com o talento ou a qualidade de suas produções do que a estratégia comercial.

Foi essa a explicação dada pela Bira em um vídeo bastante didático e que resume bem o propósito do seu canal no YouTube que inclui análises semióticas:

Em seu texto, Ben Davis traz como referência o conceito da Falácia de McNamara, que diz que qualquer coisa que não possa ser quantificada ou mensurada não é relevante.

McNamara foi um estatístico que atuou na guerra do Vietnã usando a métrica de contagem de mortos como sucesso. A ele e ao resto do exército e de sua equipe, pouco importava qual era a cultura ou a história do Vietnã, desde que a superioridade militar americana fosse devidamente aplicada e comprovada com o número de mortos.

Para arrematar a falácia, os dados divulgados pelo governo vietnamita em 1995 apontam que 200 mil soldados americanos morreram enquanto 250 mil vietnamitas encontraram o mesmo destino. Apesar de terem uma contagem de mortos menor, os Estados Unidos não saíram vencedores desse conflito que durou quase vinte anos.

Porém, conforme as tecnologias digitais avançam e seu modus operandi numérico prospera, seguimos apostando em métricas mais ou menos plausíveis.

Mesmo porque nossos algoritmos e inteligências artificiais dependem desse tipo de dado para poder fazer qualquer análise.

Anteriormente, cheguei a mencionar uma compra que fiz de um perfume curado por IA e como esse algoritmo analisa fotos que eu escolhi de modo a relacioná-las com fragrâncias. Nesse caso, o algoritmo analisa as cores das imagens enviadas, suas tonalidades, "leveza", presença de elementos da natureza, pessoas ou animais para então definir a receita do perfume.

Do mesmo modo que as IAs generativas buscam padrões nos dados para determinar uma média, também o K-pop tem a sua fórmula/algoritmo que define como uma música deve ser composta levando todos os elementos que são bem-sucedidos (isto é, números que comprovam o consumo).

Se escrever sonetos baseados em métrica parecia loucura e o parnasianismo um elogio ao TOC, na era dos algoritmos, essa é a norma.

E então o problema vira uma questão do ovo ou da galinha, quando sabemos que determinados conteúdos são mais alavancados nas redes sociais e, portanto, temos mais conteúdos sendo produzidos nesse formato.

Tudo é um remix do remix, não necessariamente porque somos autorreferentes e pós-modernos, mas porque estamos pegando carona em outros sucessos para criar frankensteins estéticos —aliás, o segundo colocado do último Eurovision é um bom exemplo disso.

Como também levantado por Ben Davis em seu ensaio, cada vez mais estudantes universitários tem se concentrado em áreas tecnológicas e de negócios em vez de estudar artes e filosofia, por exemplo.

Entre 2011 e 2020, cursos de literatura e de humanidades reduziram em até duas casas percentuais, sendo que algumas instituições decidiram até remover esses cursos de suas grades ou então estão se desfazendo de seus prédios.

Não é à toa.

Essa mudança se deu junto à chegada dos smartphones e com a crise econômica de 2008. Desde então, cursar de artes ou letras na faculdade passou a ser considerado um luxo, enquanto que aprender a programar e criar um negócio bem-sucedido tornou-se mais urgente pela própria sobrevivência financeira.

Nesse ínterim, como sugere Davis, estamos menos preocupados em entender se, de fato, uma obra de arte é boa e mais interessados na amostragem que pode nos comprovar isso.

Muita gente se orienta pela nota no IMDb ou no Rotten Tomatoes para decidir se vai dedicar seu precioso tempo àquele filme ou não.

Outros preferem usar a bilheteria como referencial, sendo que, ao mesmo tempo, existem esforços de fandoms em desbancar lançamentos para provar o ponto de que filmes de quadrinhos são melhores.

No Brasil, a fatídica história do filme sobre Edir Macedo ter ficado no topo das bilheterias com uma audiência fantasma diz muito sobre isso, assim como a febre das NFTs que expôs o que já estava em prática no mercado de arte há muito tempo. Nem todo colecionador de arte entende do que se trata aquela peça, porque o importante é saber o quão bom é aquele investimento para gerar lucros.

Quando o youtuber Gato Galáctico vibra ao receber um "NFT físico" da plataforma, isso tem menos a ver com a imagem ali contida do que o valor agregado que ela representa.

Davis cita também o caso de Sam Bankman-Fried em 2021, que vendeu um NFT com a palavra "TEST" por US$ 270 mil. Sua justificativa foi a de que:

Estética visual não é algo que eu entenda ou pela qual eu me interesse. Em geral, eu não entendo pinturas. Eu pessoalmente não entendo qual é o apelo de uma pintura de Rembrandt. Então quando eu vejo NFTs, parte de mim também não entende o apelo delas, ao mesmo tempo em que parte de mim também não entende o apelo da Mona Lisa.

Nos anos 2000, a febre hipster ditava que quanto mais obscuro (com métricas de sucesso menores) um artista, melhor. Era só o outro lado da mesma moeda que fazia crítica àquele que gostava da chamada cultura de massa, enquanto que hoje não só está tudo bem curtir divas pop como também é justificável através de números.

De lá para cá, conforme menos pessoas se sentem interessadas em estudar arte e filosofia (ou humanidades, em geral), por motivos legítimos como sobrevivência financeira e adequação aos requerimentos do mercado de trabalho, também temos menos pessoas equipadas para entender arte e filosofia (ou humanidades, em geral).

Com um arcabouço referencial e teórico menor, temos mais chances de nos surpreender com qualquer "divertimento barato" e de rejeitar qualquer desvio a essa norma.

Além disso, estamos tendo cada vez menos capacidade de ler livros por conta de reduzidas capacidades de atenção —fora a proliferação de diagnósticos mais ou menos confiáveis de déficit de atenção.

Consequentemente, o formato TikTok explode e se multiplica.

Por fim, em julho, "Oppenheimer" e "Barbie" irão estrear juntos no cinema, o que é algo incrível e sintomático de nosso momento. Apesar de os títulos parecerem diametralmente opostos, tanto Greta Gerwig quanto Christopher Nolan têm uma trajetória de filmes que foge do pastiche hollywoodiano, sendo ambos vencedores do Oscar.

Vai ser divertido assistir à reação das pessoas a ambos os filmes. Por ora, continuamos rindo e produzindo memes de Peaky Blinders pedindo ingressos para o filme da Barbie.

Na era do realismo capitalista, a autocrítica faz parte da receita, o que nos deixa ainda mais desnorteados - afinal, ser consciente de nossas escolhas e atos nos torna menos culpados? E existe culpa quando o assunto é gosto artístico?

Metamodernos que somos, aceitamos a culpa em cartório e continuamos orgulhosamente vibrando com remix do remix. Só Deus, e não os críticos de arte, pode nos julgar.