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Opinião

Aos 10 anos, Marco Civil da Internet ainda traz muitas lições para as redes

Uma colega de trabalho uma vez me disse que não conseguia entender esportes coletivos porque, no final da partida, não ficava claro quem teria sido o responsável pela vitória: o atacante que marcou o gol? O ponta que fez o cruzamento? O goleiro que fechou a porta para os adversários?

O Marco Civil da Internet completou dez anos de existência e, de certa forma, a sua construção e aplicação é uma espécie de esporte coletivo. Digo isso na qualidade de quem, aqui e ali, aparece como um dos idealizadores da iniciativa. Ênfase no "um dos".

O Marco Civil surgiu de uma consulta pública realizada na internet entre 2009 e 2010. Foi a primeira vez que o governo brasileiro usou a rede para ampliar o grau de participação no processo de criação de leis. A ideia era tão radical ontem quanto é hoje.

Consulta do Marco Civil mudou o texto do projeto de lei

A consulta aconteceu em duas etapas. Na primeira foram elencados os temas que deveriam constar da proposta de lei. Na segunda, já com uma sugestão de texto, os usuários da plataforma podiam comentar os artigos, apontando quais mudanças gostariam de ver na redação final.

A consulta foi tão bem-sucedida que algumas das soluções que apareceram no texto que foi encaminhado ao Congresso vieram dos debates travados na plataforma de consulta.

Um exemplo foi o regime de responsabilidade civil dos provedores de aplicações. O desenho do tema, hoje constante do artigo 19 do Marco Civil, e que responsabiliza civilmente provedores, em regra, apenas após a ordem judicial que determine a remoção do conteúdo, não era o que constava da proposta original.

A solução atual, que é alvo de contestações sobre sua constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, surgiu a partir das críticas que os mais diversos setores fizeram a regimes que responsabilizavam os provedores a partir do recebimento de uma notificação sobre conteúdos alegadamente danosos. Foi argumentado que isso estimularia a censura privada, que alijaria o Judiciário do debate sobre liberdade de expressão na Internet.

Passados dez anos, e um 8 de janeiro, hoje se discutem quais aperfeiçoamentos poderiam ser feitos nesse desenho tanto no que diz respeito à responsabilidade das plataformas, como no campo da moderação de conteúdo, de modo a estimular que provedores moderem conteúdos de maneira mais transparente, coerente e informativa.

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Algumas propostas atuais sugerem que as plataformas passem a responder por conteúdos impulsionados e por anúncios. Outras apontam para a criação de um dever de cuidado que, se descumprido, acarretaria responsabilização. Outras vozes querem a revogação do artigo como um todo.

Governos não devem controlar conteúdos

Seja como for, a centralidade do texto do Marco Civil é incontornável. Não se definirá o futuro da regulação da rede no Brasil sem passar por ele, seja para atualizá-lo ou complementá-lo. Espera-se, porém, que os próximos passos não passem por cima dele, descurando dos princípios cada vez mais relevantes e que a lei apontou lá atrás.

Um dos princípios não escritos do Marco Civil da Internet é que governos não devem se meter na seleção do que pode ou não ser postado nas redes. Essa missão cabe ao Judiciário. Por mais que se possa criticar o alcance de certas medidas adotadas por juízes no passado recente, o Judiciário possui instrumentos para apelação, revisão e formação de consensos que prestigiam o seu papel como instância legítima para dizer o que é lícito e o que é ilícito.

A tentação de que governos possam ditar regras sobre conteúdos não é pequena; e uma vez que essas ferramentas sejam criadas, elas valem para qualquer lado que esteja no poder. O Brasil não é estranho a esse debate, ainda mais quando se procura, muito justamente, encontrar soluções regulatórias que possam responder à violência dentro e fora das redes.

No seu décimo aniversário, o Marco Civil da Internet tem muita história para contar. As suas regras definiram os caminhos pelos quais investigações seguiram para apurar ilícitos nas redes, garantindo um equilíbrio cuidadoso com a proteção de direitos. Os debates sobre neutralidade da rede, bloqueio de apps, acesso a dados localizados no exterior, dentre outros, partiram da redação do Marco Civil.

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A próxima regulação sobre internet

A primeira lei sobre internet no Brasil não foi feita para ser a última. Existem questões que simplesmente não estavam no radar no começo de 2010, como o fenômeno da desinformação, e que demandam respostas. Essas respostas, por sua vez, devem conter atualização legislativa, mas também passam pela atuação dos tribunais, pelo desenvolvimento de tecnologias que promovam a chamada integridade da informação, além de práticas de educação digital e um olhar atento sobre os negócios gerados pela desinformação.

O Brasil possui uma tradição única em criar espaços de diálogo sobre o futuro da internet. O Marco Civil foi reconhecido por governos estrangeiros que se inspiraram no modelo de consulta pública aqui desenvolvido e avançaram na criação de novas ferramentas e metodologias a partir da nossa experiência. A Itália se baseou na iniciativa brasileira para criar a sua Declaração sobre Direitos na Internet. A França veio a seguir com a atualização das leis civis sobre temas de tecnologia.

É importante que os próximos passos que o Brasil vier a dar na regulação da rede sigam esse caminho de abertura e inclusão. Muitas vezes Brasília só escuta Brasília, criando uma verdadeira câmara de eco federal que o mecanismo das audiências públicas pouco consegue furar.

A próxima regulação da internet vai enfrentar desafios que a consulta do Marco Civil não enfrentou. Hoje parece mentira que uma consulta pública sobre esses temas tenha transcorrido por meses sem ofensas pessoais, invasão de robôs ou ataques à plataforma. As dinâmicas de mobilização nas redes mudaram o jogo, como se viu nas dificuldades para se votar o PL 2630/20, que foi ao plenário da Câmara carregando mais temas (e consequentemente mais controvérsias) do que deveria.

Na ausência de um posicionamento claro do Congresso, a bola está com o Supremo, que possui pelo menos quatro casos sobre internet pendentes de julgamento (dois sobre responsabilidade de provedores e dois sobre bloqueio de aplicações). Uma parte desse novo desenho regulatório pode sair das futuras decisões da Corte.

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Enquanto a Praça dos Três Poderes vive um compasso de espera, o TSE vai se consolidando como o regulador de fato sobre novas tecnologias, já que a cada dois anos publica suas regras sobre internet.

Para fazer frente à tanta novidade, a regulação da rede precisa continuar sendo praticada como um esporte coletivo. No saldo do Marco Civil da Internet não existiu um setor ou agente que tenha sido contemplado em todas as suas demandas. Existiram vitórias e derrotas e foi no equilíbrio dessas tensões, avaliadas mediante consulta pública e amplamente debatidas no Congresso, que se construiu uma lei com princípios e regras que durou dez anos e que agora passa pelo natural processo de atualização.

Ficamos na torcida para que o Brasil continue a jogar bonito.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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