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Opinião

Júlio Lancellotti e Txai Suruí são nossa nova elite; por que são odiados?

Na última semana estive em um debate com padre Júlio Lancellotti e em outro com a ativista indígena Txai Suruí. Ambos trouxeram seu testemunho de luta e desafio continuado. O sacerdote com seu desejo decidido e avental arregaçado, conduzindo sua obra matinal de oração, distribuindo alimento e palavras aos moradores de rua.

Falamos sobre como a aporofobia persevera em uma cidade como São Paulo, berço dos que vieram para cá sem nada. Alguns porque tudo lhes foi tirado pela guerra ou pela fome, como os imigrantes. Outros porque só tinham como vir para cá sem nada, depois de tornados homens e mulheres livres, mas sem terra, propriedade ou condições de permanência. Outros ainda afluíram para a São Paulo das Águas, para fugir do nada reservado pela seca nordestina.

Foi neste ponto que a fala do padre ecoou com a da Txai Suruí, contando como ainda hoje indígenas são assassinados como se nada fossem. Sem investigação, em silêncio, quando não em denúncia silenciosa através do suicídio. Como se não tivéssemos aprendido nada com a história. Continuamos a repetir a sina dos indígenas, que ou já estavam por aqui, e se escondiam nas várzeas dos rios, para se tornarem invisíveis, aos bandeirantes, ou eram arrastados pelos mesmos, "como nada", desde o Goiás, muitas vezes pagos por colar de orelhas apresentados.

Txai Suruí
Txai Suruí Imagem: Gabriel Uchida/Divulgação

Aliás, os únicos que gostam de dizer que estavam em São Paulo desde sempre e que no fundo sentem-se donos daqui são aqueles fugidos por perderem tudo na crise do café, que abalou o interior paulista na década de 1930. Depois de chegarem aqui sem nada nos bolsos ou nas mãos, apenas vinte anos depois podiam apresentar já o título de membro da família Paulista Quatrocentona.

Enquanto a aceleração do tempo funciona para uns, os migrantes, herdeiros dos pedreiros construtores da São Paulo nas alturas, ainda lutam, na fila do pão e nas ocupações das periferias, por um documento de posse.

Todos vieram do nada, mas alguns vieram mais do nada do que outros.

É curioso como aqueles que vieram "do nada" temem a sua imagem ancestral refletida no espelho dos carros que passam pelo centro da capital paulista. Tão estranho como o fato de que a menor reserva indígena do país, na região do pico do Jaraguá, contando apenas com dois alqueires atualmente demarcados, ou seja, "quase nada", ainda assim esteja em litígio com empreendedores imobiliários para ser implantada em toda a sua extensão.

Padre Júlio recebeu, recentemente, mais uma ameaça de morte. Desta vez por parte de um aposentado que o ameaçava dizendo que "seus dias de reinado vão acabar". Declaração ambígua para quem lembra que Jesus dizia que "meu reinado não é deste mundo". "Reinado", subentenda-se, não é a paróquia de São Miguel Arcanjo, pela Pastoral do Povo, dando de comer aos moradores de rua, mas sua fama e reconhecimento.

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Em vez de protegido por muralhas, pontes levadiças e muros de contenção, o padre Júlio luta pela lei, ora aprovada sobre as construções hostis na cidade de São Paulo.

Enquanto isso, os amigos de Txai Suruí, como Jaci e Tiago, valoroso líder Guarani, tem que se esconder, de quando em quando, porque a polícia pode aparecer para mais um de seus shows de brutalidade pirotécnica no pico do Jaraguá. Em busca de nada, por causa de nada, e é claro, na ausência de estruturas "protetivas", como muros e grades, eles também são percebidos como possuindo um "reinado indevido".

Minha questão aqui não é apenas salientar a indignidade ou injustiça por trás destas histórias, mas tentar descobrir porque exatamente estas pessoas são simplesmente odiadas.

A hipótese mais simples e trivial é que isso acontece porque eles se tornaram símbolos de uma causa que interessa suprimir e silenciar.

Temos medo dos pobres, errantes, sem-lugar, nômades, como os indígenas e as pessoas sem situação de rua, logo odiamos todos que os representam. Mas isso não explica nossa ambivalência, pois tanto um quanto outro são genericamente enaltecidos:

  • O Dia do Índio (hoje o Dia dos Povos Indígenas) que vive em ócio e comunhão com a natureza (mito do indígena feliz);
  • E a narrativa da salvação dos que se entregam-se aos prazeres do crack e do álcool (mito do usuário preguiçoso).
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O símbolo funcionaria aqui por contaminação seletiva. Em vez de odiar aquele por quem posso sentir compaixão passiva, desloco o ódio para alguém poderoso e conhecido, que está efetivamente fazendo algo para mudar a situação de todos. Ou seja, existe um ódio dirigido aos escolhidos. Um ódio que nutrimos em relação aos eleitos.

Escrevo estas linhas enquanto tento chegar em Nicósia, capital do Chipre, onde vou participar de um congresso sobre filosofia e psicanálise. Tive que fazer escala em Frankfurt e por isso aproveitei para visitar o famoso salão onde Carlos Magno teria dado origem ao Império Carolíngio, que mais tarde se pulverizou em mais de trezentos pequenos feudos lutando uns contra os outros, atrasando a entrada da futura Alemanha na modernidade. Os que tinham a prerrogativa de votar, fossem mais ricos ou mais pobres, eram assim chamados de os "eleitores", de onde provém o termo e o conceito de "elite".

Elite não é classe, e luta de classes não é ódio às elites, quaisquer que sejam elas. Elite não são os "eleitos" por Deus ou pelos seus representados, mas os que elegem.

Padre Júlio elegeu as pessoas comuns, Txai elegeu a causa indígena. Digo isso porque estudando o discurso de ódio e de como ele, frequentemente, "elege" pessoas da mesma classe, raça e até mesmo gênero daquele que odiamos, percebo uma espécie curiosa de ódio autodestrutivo ao que gostaria de chamar nova elite brasileira.

Evitando a conotação negativa que a noção de elite possui em seu uso corrente, diria que um impasse que temos pela frente na reconstrução pós-bolsonarista do país é reconhecer o absoluto e contundente fracasso de nossas elites políticas, familiares, militares e empresariais.

Para essa elite do atraso, como a chamou Jessé de Souza, a "elite é sempre o outro", por isso mesmo não preciso me responsabilizar ou me implicar no fato de que participo de uma elite. Sem esta inversão retributiva, a única coisa que podemos fazer com nossas elites é autodestruí-las, matando assim toda nova aspiração qualificada de transformação e mudança.

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Repare como aquele que diz "os políticos são todos iguais" é o mesmo que proclama que "tudo é culpa da elite".

Como o termo é apenas pejorativo, "elite é sempre o outro", elite passou a ser sinônimo de quem tem poder e não de quem escolhemos para constituir nossas autoridades simbólicas. Assim fica fácil para aqueles que a cada vez destroem o país, continuarem a denunciar "as elites" como se não fossem parte delas.

Segundo a OCDE apenas 21% dos brasileiros cursaram uma universidade*, menos de 1% terminou mestrado ou doutorado. Diria que todos eles fazem parte da elite.

A renda mensal dos 5% mais ricos do Brasil está em R$ 10.313,00**. Todos eles são elite.

Menos de 5% dos que possuem rede social tem mais de 50 mil inscritos. Todos eles são elite.

Não sei se padre Júlio e Txai Suruí se encontram nestes grupos, mas tenho certeza de que eles compõem a nova elite que o Brasil precisa.

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A regra de decisão para ingresso neste grupo não é etária, nem de renda ou de popularidade, mas o rancor que eles despertam entre os que deviam apoiá-los.

Eles não são eleitos para serem heróis pelo seu trabalho benemérito de resistência, eles são eleitos porque achamos que eles poderiam "escolher" outra coisa e mesmo assim fazem o que fazem. É a liberdade deles que os torna perigosos, pois, no fundo, esta liberdade nos lembra de nossa própria liberdade de escolher.

* É a média mais baixa dos países pesquisados, ainda que o Brasil invista 5,5% do PIB no ensino superior, média bem maior do que a dos países da OCDE (4,4%). Nós estamos atrás da Argentina (40%), Chile (34%), Colômbia (29%) e Costa Rica (28%). No Brasil apenas 33% dos ingressantes conseguem terminar um curso de graduação, o que explica a persistência da média tão baixa. Ademais, no Brasil apenas 0,84% dos jovens consegue terminar uma pós-graduação, contra uma média de 14,33% dos países da OCDE.

** O corte para estar nos 1% é ganhar mais de R$ 28.659,00.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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