'Estado de alerta': como ator se prepara para saga gay de 6h no teatro?

Em cartaz no Rio de Janeiro, a elogiada peça "A Herança" reflete sobre as mudanças geracionais dentro da comunidade gay e traz questionamentos sobre pertencimento, amadurecimento e amor. Além de trazer a pauta LGBTQIA+ para o centro do palco, a produção se destaca pelo formato inédito: são seis horas de duração divididas em duas noites. No total, 12 atores se intercalam entre 25 personagens.

Um dos destaques é o ator Rafael Primot, intérprete de Toby, um roteirista em ascensão que vive em Nova York com o namorado, Eric (Bruno Fagundes). O relacionamento de sete anos está em crise após o roteirista vindo do interior se deslumbrar com a fama de seu livro e se tornar um boy lixo para o namorado. A relação em crise abre caminho para a chegada de Henry (Reynaldo Gianecchini) na vida de Eric.

Antes de chegar ao Rio, a peça foi vista por mais de 25 mil pessoas em São Paulo. O texto é do norte-americano Matthew López e foi traduzido no Brasil pelo diretor Zé Henrique de Paula. "Só mostra o quanto o público está sedento por ouvir essas histórias. Seja um público gay, que a peça se comunica diretamente, seja o público geral, que também se interessa de alguma maneira por se aprofundar nessas questões", comenta Primot, em conversa exclusiva com Splash antes de um ensaio no Teatro Clara Nunes, na zona sul carioca.

O ator, que está indicado ao Prêmio Bibi Ferreira pela atuação na peça, revela os desafios de participar da versão brasileira da produção.

Estar no palco por três horas seguidas é um desafio físico e emocional grande. No palco, você fica em um estado diferente de quem está na plateia assistindo ao espetáculo. Quando você entra no palco, seu próprio corpo te coloca num estado de alerta. Tudo pode acontecer no ao vivo. No começo da temporada, a gente ficava muito exausto. Mas, agora, igual um atleta, a gente vai exercitando e fica mais resistente a estar no palco tanto tempo.
Rafael Primot

Carismático, o personagem sai do interior e se muda par Nova York e parece que vai ter um futuro bem-sucedido, mas acaba fazendo escolhas erradas "sem saber que são erradas". O livro de Toby se converte em um sucesso e acaba virando uma peça de teatro. Esse sucesso sobe à cabeça do personagem.

"É um cara que vai mergulhando no excesso. Começa com o excesso de bebida, depois drogas, bebida... E vai se destruindo sem saber como sair dali. De uma certa maneira, é um reflexo da condição dele, um homem gay que veio do interior dos Estados Unidos e que esconde um pouco de si, da sua origem. Ele evita olhar um pouco para os seus fantasmas. Ele cria um personagem e quer ser o que ele não é: um homem rico de Nova York."

Durante a preparação do espetáculo, ele leu livros e assistiu a filmes como "Despedidas em Las Vegas", que traz a narrativa de um homem alcoólatra, além de se atentar ao próprio texto da peça e observar o seu redor — afinal, Primot também pertence à comunidade LGBT.

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"Ele é um cara escroto, mas não queria que soasse maniqueísta, como um vilão. A minha principal preocupação era como as pessoas vão aguentar três horas desse cara. Faço ele ser o mais carismático e legal possível, porque a pessoa mais escrota do mundo também fala as coisas mais escrotas de uma maneira muito legal, tanto que ele tem amigos e não se acha escroto. Ninguém se acha um vilão da história, todo mundo, né?"

Rafael Primot em cena de "A Herança" com Bruno Fagundes, André Torquato e Marco Antônio Pamio
Rafael Primot em cena de "A Herança" com Bruno Fagundes, André Torquato e Marco Antônio Pamio Imagem: Divulgação

Sexualidade

A peça, que traz questões vividas por ele ao longo da vida, é uma forma de ele tratar sobre sexualidade no contexto de sua profissão. Integrante da comunidade LGBTQIA+, Primot considera invasiva perguntas direcionadas à sexualidade.

Faço essa peça como a minha maneira política de dar voz à comunidade. Mas a minha sexualidade não é algo que fico falando por aí, ainda mais com jornalistas. Existem mil outras questões dentro da minha vida profissional as quais discuto e acho importantes de serem trazidas à tona."
Rafael Primot

"O que faço na minha vida pessoal falo com meus amigos e com meu terapeuta, se eu quiser... Existem muitas questões em volta disso, né? Tem questões profissionais, tem questões da própria sociedade. As pessoas precisam estar confortáveis para falar, às vezes, ela ainda está resolvendo os fantasmas dentro delas."

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Artista ativista

Primot, nos últimos anos, tem sido considerado um ator ativista. E ele explica o porquê: tem escolhido trabalho que dão voz a causas que considera importante. Recentemente, lançou a série "Chuva Negra", a primeira a ter um protagonista com Síndrome de Down.

"Em muitas produções, a gente via a síndrome de Down como um acessório, era sempre o filho da filha da outra. A gente teve a preocupação em criar um ambiente especial de filmagem para que ele pudesse realizar o melhor trabalho dele... É um desafio que gosto porque recebo vários comentários e agradecimentos de famílias que têm pessoas com a síndrome ou dos próprios sindrômicos."

Bruno Fagundes e Rafael Primot na peça "A Herança"
Bruno Fagundes e Rafael Primot na peça "A Herança" Imagem: Gisela Schlogel (@gschlogel)

Serviço — A Herança no Rio de Janeiro

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Temporada até 22 de outubro (parte 1: quintas-feiras e sábados, às 20h; parte 2: sextas-feiras, às 20h, e domingos, às 19h)
No Teatro Clara Nunes - Shopping da Gávea (Rua Marquês de São Vicente, 52)
Ingressos a partir de R$ 50, via Sympla
Classificação: 18 anos

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