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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quando a normalidade implode e qualquer escolha se torna crucial

Cena de Balada Para Sophie, HQ de Filipe Melo e Juan Cavia. - Reprodução
Cena de Balada Para Sophie, HQ de Filipe Melo e Juan Cavia. Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

19/09/2022 04h00

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O grande artista que alcançou o estrelato, ganhou muito dinheiro, mas, ao final da vida, sente-se incompleto: o enrosco com as tendências efêmeras do mercado impediu que se dedicasse à busca pelo que há de sublime na música clássica. Uma reviravolta que pouco surpreende quem presta atenção nos traços das personagens e que dá um ar meloso demais para as últimas páginas da HQ. A história repassada por meio do depoimento do protagonista a um interlocutor, recurso que já cansamos de ver nos quadrinhos pelo menos desde que "Maus", de Art Spiegelman, lançado entre meados da década de 1980 e início dos anos 1990, virou símbolo do potencial da arte.

São poréns que fazem parte de uma obra bonita pra caramba. Falo de "Balada Para Sophie", HQ com roteiro do português Felipe Melo e arte do argentino Juan Cavia que chega aos leitores brasileiros pela Pipoca & Nanquim. Decadente, recluso, arrogante, grosseiro, doente, Julien Dubois tem seus últimos dias de vida atrapalhados por mais uma pessoa que insiste em revirar os seus passos. Diferente de tantos outros, a jovem que se apresenta como Adeline Jourdain, jornalista, conseguirá fazer com que a celebridade que encantava os franceses tocando músicas populares ao piano revisite o passado.

A trajetória de Julien é atravessada por conflitos pessoais e históricos. Numa camada temos a mãe rigorosa e ávida por grana e luxo que atropela qualquer preceito ético para que o filho seja reconhecido como um prodígio do piano. Em outra, a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a tomada da França pelos nazistas transforma a vida da família de Julien. Geram consequências drásticas tanto a decisão de não se render aos invasores quanto a de colaborar com os capangas de Hitler. Quando certos eventos cruzam uma história e implodem a normalidade qualquer escolha é dramática, crucial. "Não Há Mal Algum", filme do iraniano Mohammad Rasoulof, me vem à cabeça enquanto penso nisso.

Balada Para Sophie, HQ de Filipe Melo e Juan Cavia. - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Desde o início da caminhada na música, perturba vida de Julian um outro pianista: François Samson, espécie de duplo do protagonista. Homem de talento assombroso, François tem uma vida repleta de percalços. No mesmo dia em que faz uma apresentação épica, encerrada com um gesto de protesto, é levado pelos nazistas para campos de concentração. Músicos de carreiras chocadas, Julian vê no antagonista muito do que gostaria para si.

O conflito que eventualmente há entre a realização material e a satisfação profissional. A dificuldade para se tomar as rédeas da própria vida. As sombras do passado que perturbam alguém ao longo de toda a sua existência. Também as luzes que eventualmente retornam. O amor em lampejos. A culpa. De forma mais breve, o acerto de contas com aqueles que contribuíram conscientemente para que o horror destruísse um país (aspecto da obra que faz refletir sobre o nosso futuro). São essas camadas que merecem destaque em "Balada Para Sophie", HQ de desenhos e cores elogiáveis, responsáveis por ao menos uma página que gostaria de ter emoldurada na biblioteca.

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