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OPINIÃO

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'Minha cabeça está uma m...' - Livro coloca leitor diante da morte de Gabo

O escritor Gabriel García Márquez  - Colita/Corbis
O escritor Gabriel García Márquez Imagem: Colita/Corbis

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

30/05/2022 04h00

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Bem no final do livro, Rodrigo García se mostra consciente da própria condição: "Sei muito bem que qualquer coisa que eu escreva sobre seus últimos dias pode ser publicada facilmente, sem que se importem com a qualidade. No fundo sei que vou escrever e mostrar essas recordações de alguma forma".

De fato, não fosse um relato que nos leva ao leito de morte de Gabriel García Márquez, o recém-lançado "Gabo & Mercedes - Uma Despedida" (Record, tradução de Eric Nepomuceno) não mereceria atenção. Mas quando falamos do autor de "Cem Anos de Solidão", Nobel de Literatura de 1982, um dos grandes escritores do século 20 e, para alguns, o maior colombiano da história, a coisa muda. Quase tudo passa a interessar.

Filho de Gabo, Rodrigo constrói um singelo livro de memórias sobre a reta final da vida de seu pai e, de forma breve, de sua mãe. Pontuada por citações de clássicos do colombiano, é uma obra cheia de intimidades, na qual constantemente aparece a tensão que havia entre a dinâmica familiar e a figura pública do escritor. Ligeiro e afetuoso, o texto marca por nos fazer acompanhar a fragilidade, a decadência mental e a finitude de um gênio. Sem grandes méritos literários, alguns momentos se destacam pelo conteúdo.

Gabo e Mercedes - Uma Despedida, de Rodrigo García - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

É bonito o ponto de conexão entre a morte de Gabo e a de Úrsula Iguarán, personagem das mais marcantes de "Cem Anos de Solidão", por exemplo. Como é saborosa a história de Mercedes, esposa do escritor e mãe de Rodrigo, aguardando para colocar o vestido de noiva até ter certeza de que Gabo apareceria para o casamento. E é simbólica a passagem em que o autor se lembra de Gabo vivendo anonimamente em Los Angeles, onde outros ricos e famosos não faziam ideia de quem ele era, descaso inimaginável em cantos menos ensimesmados do mundo.

Gabo morreu em 2014, aos 87 anos. Foi com uma tristeza enorme que, ainda com a consciência plena, notou a proximidade do fim, conta Rodrigo. Antes da morte física, a cabeça do escritor começou a se apagar. Com o esvair da memória, surpreendia-se ao ser avisado de os supostos estranhos no quarto ao lado eram seus filhos. "Sério mesmo? Esses homens? Caralho... Que incrível".

Nessa fase, revisitou a própria obra com olhos virginais. "Pela primeira vez desde sua publicação, releu seus livros e foi como se estivesse lendo pela primeira vez. 'De onde caralho saiu isso tudo?', me perguntou numa ocasião. Continuava relendo até o fim, em algum momento reconhecendo como livros familiares pela capa, mas de vaga compreensão de seu conteúdo", relata o autor.

Entre a instável lucidez e a demência quase completa, a passagem que talvez seja a mais marcante de "Gabo & Mercedes". A secretária que encontrou o colombiano no meio do jardim, olhando para o nada. Quis saber, então, o que o escritor tinha ido fazer ali. "Chorar", ele respondeu. A moça estranhou: "Chorar? Mas o senhor não está chorando". Gabito, desolado, retrucou: "Estou sim, mas sem lágrimas. Você não percebe que minha cabeça está uma merda?"

"Gabo & Mercedes" não é um livro que empolga ou deslumbra, mas funciona bem para nos colocar próximos de García Márquez e de sua família durante o difícil ocaso do escritor.

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