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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

O que um super-herói teria a ensinar para Jesus?

O Retorno do Messias - Reprodução
O Retorno do Messias Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

24/05/2021 10h02

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Um super-herói certo de que a violência é a solução para os problemas da Terra. Um Jesus que quer voltar ao planeta para tentar, novamente, dar um jeito na humanidade. Um Deus sarcástico, algo caótico e que carrega consigo culpas e mágoas. São as peças principais de "O Retorno do Messias - Versículo 1", quadrinho de Mark Russell e Richard Pace que acaba de chegar ao Brasil pela Comix Zone.

Mexer com a religião católica costuma render chiadeira no mundo das HQs. Muitos torceram o nariz quando Robert Crumb lançou sua versão de "Gênesis" (Conrad), livro que a abre o "Antigo Testamento". Outros tantos consideraram absurdo Chester Brown colocar a prostituição como um ofício nobre e apontar que Deus prefere fiéis capazes de pensar com a própria cabeça em "Maria Chorou aos Pés de Jesus" (Martins Fontes).

Não foi diferente com "O Retorno de Messias". Em 2019, após a publicação ser anunciada nos Estados Unidos, cristãos fervorosos, refratários a releituras de sua mitologia, causaram tanto barulho que a Vertigo, selo da DC Comics, preferiu desistir do quadrinho.

Então Ahoy Comics bancou a história na qual Jesus retorna para tentar transformar a postura de Solar, o super-herói mais poderoso por estar bandas. Ao autorizar o regresso do filho outrora pregado na cruz pelos próprios humanos, o desejo de Deus era outro: que o porradeiro ensinasse o divino a ser mais durão.

Cena de O Retorno do Messias - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

O tom da HQ é ácido. Adão e Eva teriam tido filhos como castigo por desobedeceram as ordens do onipresente. No entanto, a punição "saiu pela culatra feio", pois o casal inicial teve "milhões de descendentes, que cagaram o planeta. Deus projetou o cérebro humano pra fazer arte, pra construir templos e pra bolar um monte de lorota. Tipo coisas pra ele se divertir. Mas aí o povo usou o cérebro mais pra matar, ter escravo e passar a perna no outro", registra o próprio Jesus, ao lembrar da primeira tentativa de melhorar os humanos.

Cerca de 2000 anos depois, no retorno, encontra uma Terra com muitas semelhanças àquela da época em que foi crucificado. A brutalidade e a estupidez são vias para resolver os problemas mais complexos, enquanto o ódio aos diferentes segue latente. Uma novidade são as sacanagens religiosas que brotaram. Nas suas novas andanças, Jesus cruza com quem vomita ódio em nome de seu pai e busca socar goela abaixo de supostos hereges interpretações tresloucadas da "Bíblia".

Capa de O Retorno do Messias - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Picaretagens como o "Feijão dos Preparados" soam familiares aos brasileiros, que outro dia viram um pastor prometer milagres com leguminosas. Já uma asilo que oferece pacotes para atender a "clientela 'em transição'" e busca fazer com que todos os "residentes cresçam mesmo nos últimos dias" nos lembra: os coachs e seus eufemismos podem estar presentes até nos instantes derradeiros da vida.

Na nova caminhada, Jesus chega a ser confundido com Fiuk, e aqui aproveito para falar de um dos grandes méritos da edição brasileira de "O Retorno do Messias": as soluções encontradas por Érico Assis na tradução e, ocasionalmente, na adaptação das tiradas. Ver o próprio Jesus mandando um "você peidou na farofa" após mais uma presepada de Solar rende algumas risadas extras.

Outro destaque é Deus, o personagem mais interessante da história. "Manda ver, garotão! Mostra pra eles com quem se brinca. Isso aí, putada! O filho de Deus tá na área!", bradou há dois milênios, antes que os fatos de então lhe deixasse com traumas profundos. Entre peças pregadas e tiradas de sarro, o leitor encontra um todo poderoso com fragilidades, que carrega consigo grandes dúvidas e frequenta a terapia para, quem sabe, conseguir lidar com as frustrações. O momento em que Jesus indica a dificuldade do pai em dizer "eu te amo" é de grande valor simbólico.

Como é simbólico - e, de certa forma, surpreendente - o final de "O Retorno de Messias - Versículo 1". É mesmo difícil imaginar alguma vida terrena desprovida de seus fracassos, decepções e contradições.

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