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No Dia do Poeta, sete poemas para os nossos tempos tão estranhos e sombrios

Ricardo Aleixo - Reprodução
Ricardo Aleixo Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

20/10/2020 10h04

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Em 20 de outubro de 1976 surgiu o Movimento Poético Nacional. Desde então, no país, a data marca o Dia do Poeta.

Para celebrar a data, menos discurso e mais poesia. Aqui, sete poemas que dialogam com o Brasil de 2020:

porto alegre, 2016

quando você viu na TV

aquelas pessoas em fila na chuva

a noite numa estrada

na fronteira de um país que não as deseja

.

e quando você viu as bombas

caírem sobre cidades distantes

com aquelas casas e ruas

tão sujas e tão diferentes

.

e quando você viu a polícia

na praça do país estrangeiro

partir para cima dos manifestantes

com bombas de gás lacrimogêneo

.

não pensou duas vezes

nem trocou o canal

e foi pegar comida

na geladeira

.

não reparou o que vinha

que era só uma questão de tempo

não interpretou como sinal a notícia

não precisou estocar mantimentos

.

agora a colher cai da boca

e o barulho de bomba é ali fora

e a polícia vai pra cima dos teus afetos

munida de espadas, sobre cavalos

.

Poema do livro "Canções de Atormentar", de Angélica Freitas (Companhia das Letras)

*

O Bolso ou a Vida

o mito é o nada que é tudo

o mito é o nada que é nada

o mito é um tudo que é nada

o mito é um tudo, quer tudo

.

o mito é um pouco, quer muito

o mito é um muito que é nada

o mito é um pouco que é nada

o mito é um muito sem muito

.

o médio quer muito com o mito

o mito quer média com o muito

o médio quer média com o mito

.

o médio é mito, que é média

o tudo que omito é o muito

da média do mito que é nada

.

Poema do livro "Previsão Para Ontem", de Henrique Rodrigues (Cousa).

*

Em tempos sombrios

De opressão mais sanguinária

A verdade anda pelo país

Com sapatos furados

Caminha em meio à perseguição.

.

O porrete diz: estão todos saciados

A pistola jura: ninguém morre de frio

Mas sete vezes escorraçado

O perseguido volta para os seus

E difunde a verdade.

.

Escorraçado da superfície

Aconselha sem trégua

O subterrâneo

.

Claro

Os quadros encolhem. Os mensageiros escaceam

Não é recolhida a mensagem.

Cai em esquecimento e ponto de encontro.

A tortura não faz as bocas se abrirem

Mas o assassínio as fecha.

.

Poema do livro "Poesia", de Bertolt Brecht (Perspectiva, tradução de André Vallias).

*

na palma da mão

a promessa de paz

e a iminência de guerra

.

a ânsia

o murro

e a própria sede

.

saliva de mel e cera quente

na pele navalha

.

o gozo e o escarro

.

o que se pensa

e o que nos escapa

.

a mão

o punho

o ferro

a falha

.

Poema do livro "Aquenda", de Luna Vitrolira (Livre/ Edith)

*

Apunhalam o porco.

Antes de matá-lo

já lhe chamavam janta.

Quando o animal

deixa de guinchar,

abro os olhos.

.

Pergunto sobre seu comportamento.

Hábeis para a carne,

os homens,

não me respondem.

.

Levam aos pedaços ao fogo

e logo oferecem,

remediando com algo que não pedi.

.

De agora em diante

devo aumentar minha vigilância

para que eu não faça o mesmo.

.

Poema do livro "Cesto de Tranças", de Natalia Litvinova (Moinhos, tradução de Ellen Maria Vasconcellos)

*

Queridos dias difíceis

Queridos dias difíceis,

acho que já deu - embora

.

eu considere prematuro

um definitivo adeus.

.

Querendo, voltem. Minha

casa é de vocês. Agora,

.

pensem bem se será mesmo

saudável nos testarmos em

.

novos convívios tão longos

(também não sou fácil) como

.

foi desta vez. Menos mal se

vierem em grupos - tantos,

.

em tais e tais períodos do mês.

Topam correr o risco? Vão resistir

.

até o fim? Podem vir, eu insisto.

Mas contem primeiro até três.

.

Poema do livro "Pesado Demais Para a Ventania", de Ricardo Aleixo (Todavia)

*

Último Brinde

Queiramos ou não

Temos apenas três alternativas:

O ontem, o presente e o amanhã.

.

E nem sequer três

Porque como diz o filósofo

O ontem é ontem

Pertence a nós apenas na memória:

A uma roda que já de desfolhou

Não se pode arrancar outra pétala.

.

As cartas por jogar

São somente duas:

O presente e o dia de amanhã.

.

E nem sequer duas

Porque é um fato bem estabelecido

Que o presente não existente

Senão na medida em que se torna passado

E já passou...,

como a juventude.

.

No fim das contas

Só nos resta mesmo o amanhã:

Eu ergo minha taça

A esse dia que não chega nunca

Mas que é o único

Do que realmente dispomos.

.

Poema do livro "Só Para Maiores de Cem Anos", de Nicanos Parra (34, tradução de Joana Barossi e Cide Piquet).

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