Luciana Bugni

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Opinião

Manu Gavassi e o que esperamos de artistas no Brasil: somos cobaias também?

Manu Gavassi lançou um curta no YouTube nessa quarta (13) sobre as angústias do artista contemporâneo que tem vontade de criar, mas esbarra em barreiras da indústria fonográfica. Ironicamente, ela cita um "Programa de Proteção à Carreira Artística", associação fictícia que rotula os criadores por polêmicas, garantindo assim alavancar o seu sucesso.

"O lance de ser artista não é criar o próprio conceito? Não posso ser eu e fazer o que eu quiser?", ela pergunta. A resposta da empresa é que não. Criar algo genuíno em 2023 não é garantia de sucesso. E isso não é mais permitido em tempos que quem dita o que vai bem é o algoritmo, os likes, o faturamento.

Essa parte não é tão fictícia assim: Manu é uma cantora que se firmou na juventude, como ela cita no curta. O rótulo cantora teen pegou bem. Ela também participou de reality show na vida adulta e alavancou seus números. Depois, decidiu ficar reclusa, não surfou no sucesso comercialmente tanto quanto costuma ser esperado. Manu queria criar. Logo depois do reality, saiu com "Deve ser horrível dormir sem mim", um clipe que contava com a participação de seu ex, Chay Suede, e da atual mulher dele, Laura Neiva. Lógico que bombou. Nesse caso, em uma autoironia, Manu criou com o manual do "Programa de Proteção à Carreira Artística" embaixo do braço. Polêmica e ex, tudo junto: um combo daqueles. Mas tudo bem, desde que seja o que ela queria fazer.

Será que não tem hit sem polêmica?

Marcia Fu, participante de A Fazenda, acaba de alavancar o sucesso "Escrito nas Estrelas", gravado pela cantora Tetê Espíndola em 1985. Quase 40 anos depois, a canção foi parar em primeiro lugar dos covers brasileiros no Spotify. Polêmica? Não precisou. Como faziam os astecas, para uma música ser sucesso, basta a galera gostar dela. Márcia, no reality, abriu a porta. O Google ajudou os curiosos a encontrarem a versão original. E pronto. Olha lá um hit voltando a ser hit duas gerações depois.

A gente já tinha visto esse filme com Juliette cantando "Deus me proteja", de Chico César, no Big Brother. O cantor sempre se diz muito grato a ela: a música voltou para as paradas, ganhou novas versões, bom para todo mundo. Escândalo sexual? Não precisa. Som bom é precisa ser bom.

O hit "Shallow", da trilha de "Nasce uma estrela", filme estrelado por Lady Gaga e Bradley Cooper, fez um caminho diferente. Estreou no cinema evidenciando a extrema química do casal de protagonistas. O mundo inteiro começou a falar sobre uma suposta traição que nunca se confirmou e culminou na separação dele (sim, o galã era casado). Na cerimônia do Oscar, a tensão sexual entre os dois — encenada ou não — escorria do palco quando, no meio da apresentação, Bradley achou por bem sentar ao lado da cantora no piano e cantar no mesmo microfone, com bocas muito coladas. Ui. Shallow seria um hit sem esse auê todo? Talvez. Mas eu seguramente não estaria citando o burburinho agora, quase seis anos depois, não fosse a dúvida: se pegaram ou não?

Para o artista, a obra é expressão. Pode parecer complicado de entender para quem não tem essa necessidade dentro de si, mas não produzir é quase como um engasgo. Uma maçã entalada na garganta das letras que não viraram melodias. Nesse ritual está o adicional sucesso: além de produzir, o artista quer ser visto. Daí a agonia de Manu, que ostenta 15 milhões de seguidores em rede social, mas não quer seguir o mainstream. Como diz a letra de uma de suas músicas, ela só quer ser normal, mas sente demais. Parece bobagem, mas é exatamente essa angústia perene do artista que faz com que ele produza todo tipo de arte que nos alimenta. Ostra feliz não faz pérola, disse outro artista em crise contínua — o tal do Fernando Pessoa.

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"O processo do artista de mergulhar, de sofrer, de usar a intuição leva tempo. Tempo que é incompatível com o mundo atual", diz a personagem criada por Manu em seu vídeo. Termino de ver no Youtube da TV da sala e me levanto para levar a louça enquanto a frase cala em mim profundamente. Por poucos segundos. O algoritmo joga uma música da Alanis cujo clipe foi gravado na casa dela, durante a pandemia, e tudo embaralha em meus pensamentos. Meu sentir também é incompatível com o mundo atual, Gavassi. Ninguém tem tempo de nada.

Eu preciso de Shallow ou do pega-não-pega de Copper e Gaga? Talvez, nesse caso, não precise de nenhum dos dois. Mas o segundo encoberta o primeiro. E, claro, a versão duvidosa de Luan Santana e Paula Fernandes contribuem para atrapalhar minha análise. Luísa Sonza, desde muito nova, surfa bem na polêmica. Emendar "Eu sou bem melhor sozinha" logo depois de terminar um namoro polêmico, que é questionado como traição ao relacionamento anterior, é uma bela jogada. Funciona. Se ela sente aquilo? Não dá para ter certeza, a lista de compositores tem cinco pessoas, incluindo seu ex, Vitão. Não é nesse jogo de adivinhar o que é ou não genuíno que a gente ganha alguma coisa. Arte é o que te toca. "Eu sou bem melhor sozinha" é boa demais. Pra mim, claro.

Manu é questionadora por essência — sem esforço, aquilo é dela. E a gente está aqui tentando tirar um pouco de verdade dos artistas que só precisam mesmo (por eles e por nós) oferecer sua obra. Se quiserem, claro. "Você é responsável pela manutenção da felicidade da humanidade", a cantora afirma no vídeo. Será que, desde a janela aberta das redes sociais, a gente não está esperando demais, não?

O curta traz a teoria da "sala de reabilitação para artistas desesperados que se reúnem, choram e traçam uma linda carreira na publicidade". A gente não sabe, mas está na sala do lado, consumindo conteúdo como hamsters em rodinhas, sendo cobaias desse circo criado para o lucro. Deus me proteja de mim. Eu, hein.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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