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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Travada' de Anitta, A Fazenda e BBB provam que indústria cultural estagnou

Anitta realizou um feito histórico no VMA, mas o assunto mais comentado foi a "travada" na balada - Dimitrios Kambouris/Getty Images
Anitta realizou um feito histórico no VMA, mas o assunto mais comentado foi a 'travada' na balada Imagem: Dimitrios Kambouris/Getty Images

Colunista do UOL

04/09/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • Autor defende em novo livro que internet provocou a ruptura da ligação entre cultura e status; o que diminuiu o interesse por novidades
  • Agora, somos recompensados por consumir o metatexto: os memes, as hashtags, o drama da comunidade e as teorias da conspiração
  • Popularidade e dinheiro se tornaram mais centrais na definição de status; o que ajuda a explicar o destaque dos influenciadores digitais

Você também tem a sensação que está tudo muito chato no mundo cultural? Não me leve a mal, mas o evento mais aguardado da TV no segundo semestre é A Fazenda (ao menos se você é jornalista de entretenimento). E o Boninho falando sobre os inscritos do BBB 23 já causou frisson na mídia e redes sociais meses antes do início da próxima edição do reality da Globo.

Não é apenas na TV. Talvez você não saiba cantar o refrão da última música da Anitta, mas há boas chances de que tenha lido ou visto algo sobre a cantora em alguma situação embaraçosa recentemente. Um sucesso da dupla Simone e Simaria? Mais fácil lembrar de alguma confusão no círculo familiar das artistas. E que tal o fenômeno musical internacional Dua Lipa? Ela tem aparecido mais na internet em poses de ioga ou de biquíni do que cantando.

No streaming também parece ser mais do mesmo. Temos duas superproduções bilionárias, as mais caras da história, estreando com poucos dias de diferença, mas as duas falam de reinos mágicos com ares medievais e que já vimos anos atrás. Nos cinemas podemos escolher entre diversos filmes, desde que sejam sobre super-heróis da Marvel. Top Gun: Maverick foi bem de bilheteria, mas a versão original da franquia é de 1986!

Na lista de livros mais vendidos no Brasil, publicada pela Veja, Napoleon Hill, George S. Clason e Dale Carnegie seguem firmes entre os primeiros. Um detalhe em comum entre esses autores: eles morreram há mais de cinco décadas. Na liderança das vendas, O Poder da Cura, obra do padre Reginaldo Manzotti. Apesar do sucesso, a temática religiosa está longe de ser um fenômeno cultural disruptivo na literatura.

Não me entenda mal, gosto de reality shows e os artistas e autores que citei são relevantes. Anitta acabou de ganhar um VMA. É a primeira vez que um brasileiro alcança o feito. Mas não deixa de ser curioso que, nos dias seguintes à conquista da cantora, foi o vídeo da "travada" da Anitta na balada depois da premiação que gerou o maior número de notícias e memes.

Sou um pacato cidadão de meia-idade e pai de família, dificilmente uma referência em tendências e fenômenos culturais. Mas não sou o único achando que estamos estagnados. Também não é um fenômeno limitado ao Brasil. Tem até livro sendo lançado sobre o tema.

A internet me deixou burro demais?

Uma possível explicação para a falta de inovação na indústria cultural poderiam ser as grandes corporações que dominam o setor e sua constante busca por lucros. Melhor arriscar menos e investir no que comprovadamente já funciona. Os reality shows são um exemplo, são baratos em comparação às séries e filmes e podem trazer mais dinheiro e audiência.

A justificativa capitalista tem lógica. Mas segundo Michelle Goldberg, colunista do NY Times, a melhor explicação para esse fenômeno do crescente mal-estar cultural e falta de novidades está em um livro prestes a ser lançado nos Estados Unidos. Na obra Status and Culture: How Our Desire for Social Rank Creates Taste, Identity, Art, Fashion, and Constant Change (Status e Cultura: como nosso desejo de posição social cria gosto, identidade, arte, moda e mudança constante), o autor W. David Marx explica por que o mundo estagnou culturalmente.

"Marx defende a evolução cultural como uma espécie de máquina de movimento contínuo, impulsionada pelo desejo das pessoas de ascender na hierarquia social. Os artistas inovam para ganhar status e as pessoas inconscientemente ajustam seus gostos para sinalizar seu nível de status ou passar para um novo (patamar de status)", destaca Michelle.

Segundo o autor, "as lutas de status alimentam a criatividade cultural em três domínios importantes: competição entre classes socioeconômicas, a formação de subculturas e contraculturas e batalhas destrutivas entre artistas". O problema é que a internet teria rompido a conexão entre status e cultura. Ou seja, cada vez menos ganhamos status por sermos "cultos" ou conhecer movimentos culturais novos, diferentemente do que acontecia antes da internet.

Éramos todos estúpidos antes do Google?

Quando entrei na faculdade, em 1997, lembro do dia em que estava em uma festa quando alguns colegas começaram a falar sobre a poesia de Arnaldo Antunes. Cresci no interior do Sul do Brasil, ouvindo Fábio Jr. e música sertaneja na rádio AM. Arnaldo Antunes era apenas dos Titãs e olhe lá. Então, fiquei bem quieto só ouvindo. Começo da faculdade de comunicação, ninguém quer parecer ignorante ou por fora.

No dia seguinte, fui à biblioteca da faculdade. Nada nas prateleiras. Consegui um livro de poesias do Arnaldo Antunes emprestado de um amigo. Mas exigiu tempo e esforço para ler e me inteirar do assunto para poder "fazer parte" daquele grupo que discutia Antunes, poesia concreta e afins. Nunca fui um fã de poesia, mas conhecer aquilo foi uma maneira de ganhar status entre meus pares. Pela mesma razão me forcei a ler as centenas de páginas de Ulysses, de James Joyce (que não gostei e lembro vagamente) e A Montanha Mágica, de Thomas Mann (que adorei!).

Hoje, ninguém precisa passar pela mesma situação. Se não conhecer um tema, pode simplesmente fazer uma busca no Google. Em poucos instantes essa pessoa terá acesso a mais informações do que pude encontrar após semanas de esforço. Isso é ótimo. As barreiras diminuíram e o acesso à informação foi democratizado. Mesmo o esnobismo cultural da elite, que usualmente tinha dinheiro para viajar e comprar bens culturais, desabou.

Por outro lado, o que antes demandava esforço, agora pode ser facilmente alcançado por meio da internet. Esse é o ponto do livro de Marx, a ligação entre cultura e status teve sua dinâmica completamente alterada. Agora, conhecer um movimento cultural incipiente (ou criar um), deixou de ser um sinal distintivo. Então, a arte inovadora perdeu prestígio.

Quando o valor do capital cultural é rebaixado, isso torna "a popularidade e o capital econômico ainda mais centrais na definição de status", diz Marx em seu livro. Como resultado, há "menos incentivo para que os indivíduos criem e celebrem uma cultura com alta complexidade simbólica".

Por essa lógica, chama mais atenção do público Anitta em uma balada exclusiva fazendo algo inusitado do que Anitta ganhando um prêmio por seu trabalho. Por motivos semelhantes, ex-participantes de reality shows se tornam celebridades e ganham status pelo simples fato de serem carismáticos. Não raro, o principal talento dos influenciadores é o fato de serem reconhecidos e seguidos por um grande número de pessoas.

Recompensa é consumir memes

O fato do vínculo entre status e cultura estar desaparecendo não significa que eliminamos esses três universos aos quais Marx se refere: competição socioeconômica, formação cultural e batalhas internas. Seguimos buscando maneiras de nos diferenciar de nossos pares e ter mais status.

O resultado é que estamos substituindo a antiga ligação entre cultura e status por uma de status e fã-clube. "Em um mundo onde você pode ler, assistir ou ouvir qualquer coisa, o ato de consumo não impressiona. Então, agora somos recompensados por consumir o metatexto - os memes, as hashtags, o drama da comunidade e as teorias da conspiração", explica Ryan Broderick, em sua newsletter Garbage Day.

Isso incentivou as comunidades pequenas a criarem cultos em torno de suas próprias monoculturas. Também levou as instituições tradicionais maiores a se fragmentarem em pequenas subculturas para atingir os membros de sua comunidade de maneira mais efetiva. As redes sociais criam bolhas, e para falar com essas bolhas, as instituições mandam diversas mensagens, não raro conflitantes, e cada vez mais fragmentadas.

Observe as subculturas criadas em torno de Bolsonaro e Lula. Ou o trumpismo nos Estados Unidos. Conectadas pelos memes, hashtags, drama da comunidade e teorias da conspiração, os membros dessas comunidades encontram autoafirmação, mas também status. A sensação de "saber algo" que poucos sabem ou de supostamente entender o que outros não conseguem entender é um elemento social poderoso.

Então, essas comunidades se comportam como fã-clubes, movidos por um sentimento de militância. Por isso é inútil tentar argumentar contra aquilo que acreditam. O problema é que os fãs estão fadados à frustração. O crescimento da tensão entre essas bolhas é inevitável. É por isso que os apoiadores de Bolsonaro brigam entre si, assim como os defensores de Lula também brigam entre eles mesmos. Está longe de ser um caso limitado à política.

Os fãs da DC estão em pé de guerra, com fã-clubes se atacando e trocando acusações nas redes sociais. No universo Star Wars a situação não é muito diferente. Os fãs de reality shows também vivem em confronto, divididos entre facções de apoiadores de participantes A ou B. Existem até mesmo os fãs que odeiam as edições do BBB e de A Fazenda antes mesmo do início da atração, afirmando que a versão anterior foi melhor julgando apenas pela escolha dos participantes.

Cancelamento e o tribunal das redes

Se você comanda uma campanha política, dirige um grande estúdio, é uma figura pública ou produz reality show, está à mercê da multidão. São milhões de pessoas na internet, que criam e consomem memes e toda sorte de migalhas digitais. E é essa multidão disforme que cada vez mais determina se alguém ou algo será cancelado ou não no tribunal das redes sociais.

No passado era mais fácil moldar e conduzir os eventos culturais. A imprensa tinha papel central em pautar as conversas e determinar o que tinha relevância cultural. Mas outra consequência da ruptura entre cultura e status criada pela internet foi a audiência ver cada vez menos valor no jornalismo tradicional. Consumir e digerir a informação é secundário, a prioridade é o burburinho e o circo digital.

Não surpreende que sites de entretenimento, que parecem jornalísticos, publiquem cada vez mais fake news. Cada vez menos pessoas querem ler um texto longo e se aprofundar em um tema. Basta o título. É mais fácil ganhar milhares de likes com um meme divertido, um vídeo de poucos segundos ou escrevendo um comentário esperto/irado de 140 caracteres.

Certamente existem coisas bem legais sendo produzidas e lançadas. Infelizmente, esses conteúdos têm cada vez menos visibilidade e impacto. O BBB está indo para sua edição 23, a Fazendo estreia em alguns dias sua edição 16 e "O Show das Poderosas" da Anitta foi lançado em 2013.

Faz quase uma década que Anitta revolucionou a música brasileira trazendo o funk para a sala de estar dos brasileiros. Foi um choque. Mas um choque causado pela música, não memes em redes sociais. Anitta é a prova que o mundo já foi mais interessante.

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