Flavia Guerra

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Reportagem

Todo mundo tem uma Vera Holtz como a 'Tia Virgínia' na família

Nem toda família grande tem uma Tia Virgínia, ainda que quase todas tenham. Mas toda família certamente tem em sua história um Natal tão engraçado quanto tenso, tão patético quanto trágico, em que velhas mágoas saem à tona enquanto se cozinha e se põe a mesa não só para a ceia mas para grandes discussões.

Foi a história bem específica de um Natal em sua própria família, mas que tem pontos de contato com tantas outras famílias, que o diretor Fabio Meira (de "Duas Irenes) quis contar com "Tia Virgínia", longa exibido na noite de domingo (13) no Festival de Gramado que teve vários aplausos em cena aberta durante a sessão.

Parte dos aplausos foram para a genialidade de Vera Holtz, que empresta seu talento à personagem-título do filme. Tia Virgínia é a terceira de três irmãs. Ao contrário das outras duas, Vanda (Arlete Salles) e Valquíria (Louise Cardoso), ela "ficou para titita". Não se casou, não seguiu sua profissão e, à beira de se tornar uma idosa, mas ainda mora na antiga casa dos pais. Convencida pelas irmãs, ela interrompeu sua vida na cidade grande para voltar e cuidar da mãe inválida (Vera Valdez), da velha casa e vive frustrada por não ter construído sua própria trajetória.

Louise Cardoso, Vera Holtz e Arlete Salles são três irmãs em "Tia Virgínia", de Fábio Meira
Louise Cardoso, Vera Holtz e Arlete Salles são três irmãs em "Tia Virgínia", de Fábio Meira Imagem: Divulgação

Na véspera do Natal, a casa, que fica um tanto quanto isolada, recebe a família, que inclui ainda dois sobrinhos, um cunhado (turma formada por Daniela Fontan, Iuri Saraiva e Antonio Pitanga ), além da empregada. Cada um dos cantos da casa, tão cheios de história, passam a ser preenchidos por inquietação, discussões, muito rancor, muita roupa suja lavada, muito drama, mas também muita comédia e muitas risadas.

"É algo do brasileiro. É tragicômico. O brasileiro consegue viver um drama e, no dia seguinte, já transforma isso em comédia. Isso quando não transforma na mesma hora, ainda mais hoje em dia, na era da web, tudo vira meme. O brasileiro realmente tem o lado do humor muito presente, é rápido, rasteiro", respondeu Vera em conversa com o Splash, quando questionada sobre as referências que cada espectador encontra em "Tia Virgínia" — como com "Parente é Serpente", de Mario Monicelli, "A Casa de Bernarda Alba", de Mario Camus (baseado na obra de García Lorca que, não por acaso, é citado no filme, pois Virgínia trabalho na montagem da peça), a obra do cineasta sueco Ingmar Bergman, entre outros.

Há de fato uma bela lista de filmes que levam para as telas o microcosmo crucial que é a família e suas dinâmicas. Há também a relação que cada um, ao assistir ao filme, faz com sua própria família. Não foram poucas vezes que o diretor ouvir desde a première do filme frases como "na minha família também é assim", "eu tenho uma tia Virgínia", "isso lembro os Natais da minha família".

Não por acaso, Fabio Meira inspirou o roteiro do filme em sua própria família e em suas tias, que não só já assistiram ao filme como aprovaram o roteiro. "Elas leram o roteiro e acharam bem leve. Mas, depois, quando foram ver o filme, disseram: 'Pesado, né'? E assim é a minha família", contou o cineasta em conversa com a imprensa nesta segunda.

Além do roteiro que modula com brilhantismo o drama, a comédia e até um quê de tragédia, há uma engrenagem muito bem acertada que faz com que Tia Virgínia, ainda que se passe quase totalmente dentro de uma casa, nunca caia no tédio. Os diálogos são primorosos, o elenco idem, a direção de arte e a direção de fotografia ajudam a construir a personalidade da família e da casa, um verdadeiro personagem em cena.

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Já Vera brilha como a mulher que, à beira de completar 70 anos, cansou. Ela decide mudar e a crise de todo Natal ganha contornos maiores. A dinâmica entre Vanda, Valquíria e Virgínia é deliciosa e, não por acaso, Vera já figura como favorita ao Kikito de Melhor Atriz.

Ao trazer três mulheres tão interessantes e belas que encaram, cada uma a seu modo, a terceira idade, "Tia Virgínia" é prova de que é possível viver, mudar, ser bonita na velhice. Ainda que isso possa parecer um grande clichê, é sempre oportuno valorizar filmes que nos apresentam mulheres maduras para além dos estereótipos.

Destaque para a forma como os corpos e a beleza de cada uma delas é retratado não só pela câmera do diretor de fotografia Leonardo Feliciano, mas pelo olhar de Meira. Elas estão lindas em cena. "Eu me acho linda sim. A gente tinha muita confiança no olhar da equipe. A gente não sentiu esta questão. Quando passei a mão no corpo da Vera (Valdez, que, como a matriarca desta família, inválida, conta com Virgínia para tomar banho), estava tocando um corpo pela primeira vez. E é a primeira cena do filme, um nu. Aquele corpo com sua potência e sua finitude também, como todos nós. Havia uma poesia permanente no set. A gente estava num estado permanente de poesia e de cuidar uma da outra", respondeu Vera sobre a forma como os corpos femininos são retratados no filme.

Questionada sobre gostar de ver filmes com personagens maduros em cena, Vera afirmou que adora. "Claro! Achei linda a cena do sutiã. É uma cena em que nós todas estamos com lingeries e é lindo. É linda a maturidade."

"O etarismo inventaram agora. Mas a velhice não tem o que inventar. Esta ideia do etarismo é para se discutir mesmo e colocar o envelhecer em outro lugar. Não no lugar do "ela é uma velha". Isso é um xingamento. A velhice é um momento da vida, que todos vamos passar e sempre existiu", comentou a atriz.

"Então gosto de ver. Acho bonito. Tem atores e atrizes muito potentes. A idade te coloca em outro lugar. Não que não tenhamos atrizes mais jovens que não tenham a percepção da interpretação. Mas temos que aplaudir. A gente tem no Brasil atores e atrizes longevos e temos de aplaudir", concluiu.

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"São épocas. Estamos em uma época em que os roteiros estão voltados para outra dinâmica, que às vezes requer uma mulher mais jovem que a gente não consegue fazer. Mas estamos também num momento em que estamos querendo contar outro tipo de história. E os papéis já começam a se diversificar e aumentar. Quando as pessoas querem os espaços são abertos para todos poderem trabalhar", concluiu a atriz.

Sobre o momento em que está, aos 70 anos, completados em 7 de agosto, Vera comentou que sente que uma personagem ajuda outra e a própria atriz. "Tudo está conectado. Personagens mais obscuros também abrem canais que a gente nunca tinha tocado. Personagens que têm muita vilania vão nos rompendo, abrindo, ensinando mais sobre a natureza humana. Até mesmo os personagens mais ligeiros. Cada vez sua tessitura como atriz vai ficando extensa. Cada vez mais a gente vai analisando mais profundamente as personagens que aparecem para a gente fazer", analisou a atriz.

"A Tia Virgínia é uma personagem cuja história não aparece no filme, mas está lá. A gente fica sabendo, mas ela armou uma história para ela para recomeçar a vida", concluiu.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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