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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Primeiro longa-metragem do Acre, 'Noites Alienígenas' aterrissa em Gramado

Chico Diaz e Gabriel Knoxx em cena de "Noites Alienígenas", de Sérgio de Carvalho - Divulgação
Chico Diaz e Gabriel Knoxx em cena de "Noites Alienígenas", de Sérgio de Carvalho Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

18/08/2022 04h00

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No 50 Festival de Cinema de Gramado, já tão simbólico não só pelo aniversário mas também por marcar a volta ao formato presencial, a participação do cinema do Norte do Brasil já entrou para a história. E mais ainda por esta edição trazer em competição oficial o primeiro longa-metragem de ficção realizado no Acre: "Noites Alienígenas", que aterrissou no festival da Serra Gaúcha em clima de expectativa e surpresa.

Se a ignorância sobre a cultura acriana é grande por parte do restante do Brasil, o mesmo ocorre com o audiovisual produzido no estado. E a descoberta de um filme potente, cheio de energia e vigor foi um dos pontos altos desta edição, que teve outros ótimos destaques na competição oficial, como "Mãe'' de Cristiano Burlan, "O Pastor e o Guerrilheiro", de José Eduardo Belmonte (que traz, aliás, a Guerrilha do Araguaia em pauta e foi vaiado pelos apoiadores de Bolsonaro na passagem da equipe do filme pelo tapete vermelho), "A Porta ao Lado", de Júlia Rezende, e "Marte Um", de Gabriel Martins, o mais forte concorrente ao Kikito este ano ao lado de "Noites Alienígenas".

Dirigido por Sérgio de Carvalho, o filme retrata a história de uma Amazônia urbana, protagonizada pela juventude de Rio Branco que se debate entre pobreza, abandono e o poder do tráfico de drogas, cujas facções do sudeste invadiram o norte com força e sem piedade. É um Brasil que pulsa, que sangra, em que meninos que cresceram juntos, jovens indígenas e negros, são cooptados por forças que servem a senhores que os desumanizam e os transformam em inimigos, em uma guerra urbana em meio a uma floresta que também está sangrando.

Descobrir este Brasil na tela, tão vilipendiado mas também tão forte, enche os olhos de uma plateia que também descobre muito de uma realidade e de uma cultura ainda muito exotificada e distante. Mas distante para quem?

Noites Alienigenas - Edison Vara / Divulgação  - Edison Vara / Divulgação
A equipe de "Noites Alienígenas" leva a Gramado uma história de violência mas também resistência no Brasil profundo
Imagem: Edison Vara / Divulgação

Só por propor esta reflexão, "Noites Alienígenas" já faz desta uma "uma edição histórica", como disse a diretora Tami Martins, de "Solitude", ao apresentar a animação na noite de terça-feira no Festival de Gramado. O curta é o primeiro filme do Amapá a concorrer no festival. Pode parecer exagero de Tami, mas ela tem razão.

O cinema do norte do Brasil nunca esteve tão presente em um dos festivais mais importantes do País. Ao lado de "Solitude" (codirigido por Aron Miranda), outros dois curtas do Pará representam as histórias de um Brasil que vão muito além do chamado eixo Rio-São Paulo (por muito tempo considerado o centro do cinema no Brasil - um pouco por questão de volume de produção e outro tanto por arrogância).

Completam a lista os curtas "Benzedeira", de Pedro Olaia e San Marcelo, e "Socorro", que tem a carioca Susanna Lira na direção, mas conta a história da líder comunitária paraense Socorro do Burajuba, e, na competição de documentários, também está o paraense "Eu Nativo", de Ulisses Rocha, que retrata a vida dos povos Kayapó, Potiguara e Tabajara.

Importante observar que um ponto é consenso para todas as equipes, sejam curtas ou longas: a atual força do cinema do norte do Brasil é fruto da combinação do trabalho duro dos profissionais com uma política pública de descentralização da produção audiovisual brasileiro.

Solitude - Divulgação  - Divulgação
O curta "Solitude" é o primeiro filme do Amapá a competir no Festival de Gramado
Imagem: Divulgação

"Noites Alienígenas" foi produzido por meio do edital de baixo orçamento do extinto Ministério da Cultura. Sérgio faz questão de frisar que a produção de toda região norte do Brasil nunca produziu tanto e tão bem quanto nos anos em que a política pública do governo federal valorizou também a região. "Chegamos a ter um escritório da Ancine (Agência Nacional do Cinema) em Manaus. Hoje, está fechado. É uma pena. Espero que esta política de valorização da cultura e do audiovisual do norte volte a existir e a crescer", comentou o cineasta.

Sérgio nasceu no interior paulista, estudou cinema no Rio de Janeiro, mas há 20 anos adotou o Acre como sua terra. "Quem me levou para o Acre era do Daime. E o Acre não estava nos meus planos. O convite de uma amiga que já morava no estado e estava indo para o primeiro Festival Cine Amazônia, que é de Rondônia, acompanhando a Lucélia Santos. Ela me convidou para ir como câmera. Quando eu cheguei no Acre, foi arrebatador", relembra o cineasta.

Mas ele pondera que nestes anos, a realidade acriana se transformou. "Cheguei em outro Acre, durante o governo do Jorge Viana, quando muitos centros culturais estavam sendo construídos, havia uma valorização do ser indígena, do ser seringueiro. Havia um trabalho da questão de identidade acriana. Se eu chegasse neste Acre de hoje, talvez não teria ficado. A gente está vivendo um momento muito duro. Como parte meu coração quando vejo as facções chegando", analisou o cineasta, que antes de se mudar para o Acre fez estágio na produtora TV Zero do Rio, época em que trabalhou no lançamento de "Cidade de Deus" e acompanhou de perto a questão da violência na capital carioca. "Quando cheguei no Acre, foi um alívio. Havia outras violências, mas esta como a do Rio não. Quando esta violência chegou, foi muito ruim."

Sergio de Carvalho - Cleiton Thiele / Divulgação  - Cleiton Thiele / Divulgação
O diretor Sérgio de Carvalho adaptou seu livro homônimo para o cinema e retrata a juventude de um Brasil complexo
Imagem: Cleiton Thiele / Divulgação

Foi seu olhar atento para um norte em profunda transformação que rendeu o livro "Noites Alienígenas", e 2011, no qual o longa é baseado. "Mas tive de atualizar, pois o livro não continha este novo contexto." Desde que escreveu o livro, as cidades do norte do País foram ocupadas por forças do tráfico do sudeste do País e meninos como Rivelino, o protagonista do filme, caíram na mão de facções que foram responsáveis em elevar o índice de mortes a níveis nunca antes vistos.

Na trama, Rivelino é interpretado pelo rapper Gabirel Knoxx. Ele faz entregas para o traficante maluco-beleza Alê (um estupendo Chico Diaz), que enxerga tudo com humanidade e ponderação. Alê nos é apresentado em um plano-sequência delicioso, em que ele canta "Cachorro-Urubu", de Raul Seixas, na qual inclui outras nações indígenas brasileiras além dos Sioux (citados na letra original), e se revela um ser inspirado.

O traficante funciona como uma figura paterna para um garoto que, como milhões nas periferias do Brasil, crescem sem o pai. Rivelino é apaixonado por Sandra (Gleice Damasceno, vencedora do BBB 18), que sonha em estudar medicina enquanto trabalha em um restaurante, participa de slams (a cena hip-hop em Rio Branco é rica e pulsante), cuida de seu filho bebê e tem de lidar com as aparições inconvenientes de seu ex, o jovem indígena Paulo (Adanilo Reis). Dependente de crack, ele mal vê o filho, deve para Alê, para sua mãe e, claro, para a "Família" (em referência à Família do Norte, uma das maiores organizações criminosas do País, que domina a região norte).

Adalino Reis - Divulgação  - Divulgação
Adalino Reis vive o jovem indígea Paulo, dependente de crack, que quer retornar à sua ancestralidade para se livrar do vício
Imagem: Divulgação

Paulo quer voltar para casa, para suas origens, para sua ancestralidade, sua saúde, mas, como diz Alê, é difícil voltar. É também difícil sobreviver quando se cresceu em um beco, em uma casa sob a qual passava o esgoto, em um cantão de uma capital do País em que muitos jovens sequer já saíram para conhecer sequer o centro da cidade.

Esta foi a infância real de Knoxx. E o rapper fez questão de pontuar isso na entrevista coletiva do filme em Gramado. Esta é também a de milhões de crianças brasileiras. Rivelino é filho de Beatriz (Joana Gatis), que o cria sozinha e que se preocupa com a vida que o filho está levando, assim como milhões de mães brasileiras. Joana, ao lado de Chico Diaz, protagoniza uma das cenas mais fortes do filme, ao som de "Porto Solidão", de Jessé. Dolorosa, sensual, barroca e profundamente brasileira, a cena que traz o balé de Alê e Beatriz em um bar à beira do rio resume o entroncamento de tantas camadas de um Brasil complexo, sofrido, poético e desafiador. A cena fecha o filme com poesia, mas os pés fincados na realidade.

Há realismo fantástico em "Noites Alienígenas", principalmente no universo indígena de Paulo e sua família, mas não se foge da dura realidade que assola a juventude das grandes cidades brasileiras. Não há magia que resolva nosso problema social. Mas há a cultura e a resistência que brotam e pulsam nos becos, palafitas, favelas, comunidades e periferias.

É aí que está a universalidade de "Noites Alienígenas", um filme com os pés fincados na realidade da Amazônia, na vida contemporânea das cidades do norte, mas com os sonhos, as tragédias de jovens de todas as regiões brasileiras. O filme é o supra sumo de um Brasil em que a ancestralidade indígena é sufocada a cada dia pelo avanço do dito progresso, do crescimento desenfreado, do crime organizado, em que, ao mesmo tempo, é nesta ancestralidade e na cultura que está a força e a maior riqueza do Brasil.

"Noites Alienígenas' também será o primeiro longa de ficção do Acre a chegar ao circuito comercial em breve, pela distribuidora Vitrine Filmes, e, aí sim, seu ciclo começa a se completar e que o ciclo do cinema do norte do Brasil não pare mais de girar.